4. Biblioteca.

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No dia seguinte eu desejei que fosse férias permanentes e que eu pudesse ficar o dia todo na cama, porque eu me sentia quebrado física e mentalmente.
Eu não tinha pregado os olhos a noite toda. Tive pesadelos com Danielle, com o vídeo, com coisas aleatórias como filmes de terror e ouvi muitos barulhos durante a noite, mas eu não sabia se era sonho ou realidade. Pareciam vozes, era perturbador. Estava decidido: eu não ia pro colégio nem fodendo.
Ouvi duas batidas na porta. Virei para o lado e me cobri, fingindo estar dormindo. Mas as batidas não paravam.
- O que é?! - eu resmunguei. - Abre logo essa droga - praguejei um monte de palavrões contra o travesseiro.
- Victor, eu e Mike já estamos prontos. Falta só você. - ouvi uma voz, acho que era Kellin. Sei lá.
- Hm. Não vou não. Adeus. - respondi ríspido.
- Mas...
- Eu não vou e pronto, tá legal?! - minha voz subiu duas oitavas, mas o travesseiro abafou o som. Houve um momento de silêncio, então eu achei que ele tivesse ido embora, mas então eu ouvi um suspirar pesado.
- Não. Você vai. Eu sei que a recuperação de química é hoje, e eu não gastei meu tempo te ensinando a matéria à toa. - ele disse decidido. Era estranho ver ele falando num tom de voz tão autoritário.
Me virei e o olhei, virando meus olhos. - Eu não pedi sua ajuda. - falei entre dentes.
- Você parece uma maldita criança. - ele disse vindo até mim e tirou minha coberta. Ele falou palavrão ou eu não acordei ainda?! - Não importa quão merda você se sinta, você não vai poder se esconder nesse quarto escuro o dia todo, então levante-se para viver a droga da sua vida. - fiquei um pouco assustado com o que ele disse. Kellin parecia tão convicto, olhei para ele e seus olhos azuis pareciam brilhar na penumbra do quarto. Nem parecia o garoto tímido de antes. Parecia um gatinho revoltado malditamente fofo, o que me dava vontade de rir.
Prendendo o riso o máximo que podia, eu me levantei contra-gosto. - Sai daqui pra mim me arrumar. - falei baixo e escondi uma risadinha atrevida com um pigarro. Kellin saiu do quarto como um furacão. É estranho ter um ser que mal me conhece me "obrigando" a levantar, sabendo que nem Mike faz esse tipo de coisa. Eu não devia obedecer ele, mas meu sono já foi pro brejo. Que merda.
Me levantei coçando o olho e tentei me arrumar da melhor forma possível, mas minha cara estava horrível: grandes olheiras abaixo de meus olhos castanhos opacos e sem vida e rosto inchado. Não dei muita importância e fiz minhas higienes. Vesti a primeira roupa que achei jogada, escondi meus cabelos numa toca cinza e desci. Não estava com fome, então só coloquei meus fones de ouvido e esperei Mike terminar o café, o que não demorou muito. Passei o caminho todo ouvindo minha playlist bad/depressed/revolts e quando percebi já estava na escola. Apenas abaixei o volume, não me importando em desligar o som. Minha cabeça doía como se alguém tivesse me dado uma porrada com um taco de beisebol. Droga de noite mal dormida e de pesadelos!
Como faltava muito tempo para dar o sinal, fomos pro pátio e encontramos Jaime e Tony sentados em baixo de uma árvore, rindo como hienas de algo no celular. Senti um calafrio, da última vez que vi alguém rir de algum vídeo, minha namorada estava nele e ele não era nada engraçado. Mas ok. Já passou. Não deve ser nada.
- Tudo okay, Vic? - Mike sussurou para que só eu ouvisse.
- Sim. Apenas não tive uma boa noite de sono. - respondi no mesmo tom e me sentei do lado de Jaime e me estiquei minimamente para enxergar o celular, então vi que eles estavam vendo um dinossauro usando cocaína enquanto ouvia uma musiquinha esquisita. Começamos a rir como drogados daquilo.
- Olha esse vídeo aqui, cara. - Tony mudou para outro e nós rimos mais ainda.
- Ei, cadê o Kellin? - Mike perguntou e só então eu notei que ele tinha sumido.
- Sei lá - respondi olhando em volta. Ele não tava em lugar nenhum. Continuei vendo vídeos e eu ri tanto que até esqueci da minha dor de cabeça... Bom, valeu a pena ser enfernizado pelo Kellin, porque eu não teria rido tanto a ponto de estar com vontade de mijar se tivesse ficado dormido.
- Vou ir no banheiro. - avisei pra ninguém específico e me levantei. Tirei vestígios de grama da minha calça e caminhei até o banheiro. Aparentemente estava vazio.
Entrei numa das cabines e fiz minhas necessidades tranqüilamente. Enrugo a testa ao ouvir um barulho esquisito. Era como se alguém tivesse engasgado. Parecia que alguém estava vomitando. E não era pouco. Blé.
Sai da cabine e fui ver o que estava acontecendo. Parei em frente à porta fechada e pensei se devia abrir, afinal, eu não tinha nada a ver com seja lá o que esteja acontecendo ali dentro, e vai saber que raios estão fazendo. No fim, dei de ombros e empurrei a porta levemente.
Levei um susto. De joelhos, apoiado no vaso, derramando seu estômago lá dentro, estava Kellin. Lágrimas escorriam por suas bochechas e ele tremia muito. Senti vontade de vomitar pelo cheiro, mas também senti um mal-estar por ver ele naquele estado.
Meu coração se partiu ao ver seus olhos claros agoniados e tristes.
- Hey, Kellin. Você tá bem? - fiz a pergunta mais idiota da face da Terra pra alguém que claramente está à beira de vomitar o próprio fígado. Ele estava tentando recuperar a respiração, seus cabelos grudavam em sua testa. Eu não sabia o que fazer.
- T-tô. - ele mentiu com um fio de voz e tossiu tentando se levantar, mas estava fraco.
- Eu te ajudo. - segurei-o pela cintura e passei um de seus braços em torno do meu pescoço, o levando até a pia. Voltei para a cabine e tampei meu nariz, dando descarga. Kellin estava lavando a boca e o rosto, ainda chorando um pouco. Não entendi por quê. - Que raio aconteceu com você? - perguntei vendo-o pegar papéis para secar seu rosto.
- N-nada. - ele ainda tremia e sua voz estava fraca e ferida. Ele limpou os rastros de lágrimas com as costas das mãos. - Eu apenas comi algo que não me fez bem ou sei lá. - respondeu sem me olhar. Estranhei, ninguém vomita assim, "sei lá". Kellin parou em frente ao espelho e ajeitou o cabelo. Suas bochechas estavam vermelhas assim como seus olhos tristes. Ele me olhou e deu um mínimo sorriso, mas parecia sincero. - Obrigada por se importar e me ajudar.
- Você não precisa agradecer. - eu respondi sorrindo para ele, com pena. Ver ele tão frágil me deixava assustado, já que ele parecia sempre feliz.- Você tem certeza que está bem?
- Sim, eu acho que sim. - ele fungou algumas vezes. Estreitei meus olhos pra ele, ele estava olhando para o chão e sua voz não tinha emoção.
- Se você quiser Mike pode te levar embora...
- Não, tá tudo bem. Obrigada, sério. Eu acho que deu o sinal, qual é sua próxima aula? - perguntou mudando de assunto.
Eu sabia que aquela tática é a mesma que eu uso quando quero fugir de um assunto, mas não insisti.
- Acho que é de Francês. E sua?
- Matemática - ele fez uma careta - Destesto.
- O que você acha de matar aula? - sugeri sem um pingo de vontade de ir pra aula de francês. A professora era o demônio em pessoa, Jesus.
- Beleza. Mas o que você pretende fazer? - perguntou e nós caminhamos para fora do banheiro, indo em direção aos corredores já vazios.
- Na verdade, nem sei. Podemos simplesmente andar por aí, ficarmos escondidos na biblioteca ou ir ao Starbucks até dar a hora de ir embora. - dei de ombros colocando minhas mãos nos bolsos.
- Ficar escondido na biblioteca me parece uma boa, eu vivo fazendo isso. Assim, podemos entrar no próximo período.
- Ok. Eu tenho uma recuperação na 2ª aula, mesmo.
- Outra? - ele perguntou me olhando com os olhos levemente arregalados.
- Yeah - eu ri como se devesse me orgulhar disso. - Eu durmo na maioria das aulas e só estudo nas recuperações. Essa é minha forma de passar de ano.
- Você é estranho - ele balança a cabeça soltando uma risadinha.
- Obrigado. Mas eu já sabia. - sorri convencido.
A biblioteca ficava no segundo andar, então subimos as escadas em silêncio. Eu não tinha muita intimidade com ele, então era difícil encontrar um assunto às vezes. Entramos na biblioteca praticamente vazia e começamos a andar por entre as prateleiras. Kellin esticou seu braço, passou as mãos pelos livros e depois mostrou sua mãos para mim. As pontinhas de seus dedos estavam encardidas.
- Eles precisam de uma faxina urgente - fez uma careta limpando a mão em meu moletom preto.
- Ei, bobão - eu reclamo e estapeio o lugar para o limpar. Ele ri e eu presto mais atenção do que deveria em sua expressão mudando de triste para feliz por frações de segundos e me sinto estranhamente bem por eu ser a causa disso.
Procuro me distrair olhando para livros aleatórios de suspense e terror, Kellin some, de novo. Continuou olhando os títulos e puxo um livro, o que me dá uma visão dele do outro lado da prateleira, folheando um livro completamente distraído, o cabelo tampando a lateral de seu rosto. Tenho uma ideia maligna e dou uma corridinha silenciosa, me escondendo atrás de outros livros e fazendo minha pior careta. Espero Kellin tirar o livro do lugar, e quando ele o faz, eu berro e ele me vê com a "carona" ali, o que o assusta. Ele dá um gritinho agudo e pula, derrubando o livro no chão. Começo a rir. Muito. Me encurvo e acabo derrubando mais livros, o que faz a tia da biblioteca fazer um "shh" gritado.
- Filho da puta. - ele coloca a mão na testa tentando parar de rir e eu faço o mesmo. Sua risada é contagiante e fofa. - Quase morri.
- Oh, me desculpe - minha voz é carregada de ironia.
Nossas risadinhas é interrompida pelo sinal tocando e meu bom-humor evapora. Guardamos de qualquer jeito os livros na prateleira e fomos para o corredor lotado, pegar nossos livros no armário. Eu somente ajo como se não tivesse ajudado Kellin vomitando e acabado de o assustar só para vê-lo sorrir, e continuo o ignorando e o respondendo com monossílabas como antes. Afinal, nada entre nós mudou e pra mim ele é apenas um desconhecido. Um desconhecido com uma risada contagiante e fofa que não sai da minha cabeça.

Broken Pieces • KellicWhere stories live. Discover now