Desabafo de um passado

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Na quinta-feira anterior à oficina, ao fim das aulas voltei pra casa sozinha, eu não queria conversar com ninguém, e sabia que se saísse com Renan, das duas uma; ou o trataria mal ou desabaria com os meus problemas; então, saí sozinha da mesma forma que havia feito na semana inteira. No dia seguinte não haveria aula, então eu teria um tempo só.
Já na tarde de quinta, meus pais haviam ido trabalhar e eu estava sozinha, acompanhada unicamente dos meus pensamentos, alguns bons, outros ruins, mesclavam-se as nostalgias do passado com Rafa e os flashes dos melhores momentos desde que chegara a São Paulo, esses pensamentos foram interrompidos por batidas na porta. Era tudo que eu menos precisava àquela hora.
-Que é? -falei abrindo a porta meio sem pensar e vi que se tratava de Renan.
-Boa tarde pra você também.
-Boa, não. Só tarde mesmo. -falei voltando ao sofá, gesto que ele acompanhou.
-Aconteceu alguma coisa?
-Do que cê tá falando?
-Ok que você não é muito fã de sair de casa, mas você tá estranha esses dias.
-Escuta, eu tô bem, só me deixa sozinha.
-Bem?! Lice, eu te conheço o suficiente pra saber que você não está.
-Ah é, espertão? Então fala aí como você acha que eu estou, fala o que eu estou passando. Renan, você não sabe nem metade do que eu tenho sentido nesse último ano, eu tenho estado com você todo esse tempo, mas meus pensamentos raramente estão aqui, principalmente esse mês. Por favor, me deixa.
-Esse mês? O que exatamente "esse mês" tem de diferente dos outros?
-Nada, esquece.
-Que história é essa de nada? Me conta, vai!
-Cê quer mesmo saber? -falei com a voz levemente alterada.
-Não, Alice, perguntei à toa. -disse revirando os olhos- É óbvio que eu quero saber.
-A Rafa é meu problema! Esse estúpido mês é o meu problema!
-Quem é Rafa?
-É uma longa e triste história.
-Tenho todo o tempo do mundo.
-Por que se interessa tanto pelo que eu sofri?
-Porque eu te amo e me importo com você, menina! Será que nunca percebeu? -olhei pra ele surpresa e, ao ver que fiquei calada ele prosseguiu- Eu não sei quem é Rafa, nem o que essa pessoa te fez, mas não deve ser um grande problema, eu entendo de problemas.
-Você acha que entende de problemas?? Renan, eu perdi a Rafa, a minha melhor amiga de uma das maneiras mais terríveis que se possa acontecer, já faz quase um ano e isso ainda me consome, o aniversário dela está prestes a chegar e semanas depois completa um ano daquele maldito incêndio! Eu tenho medo desde então, porque a minha mente paranóica ridícula insiste em me fazer acreditar que se eu me apegar a você ou a qualquer outra pessoa eu vou perdê-la sem mais nem menos. Você realmente acha que tem problemas??
-Alice. -ele disse isso e me calei, ele quase nunca me chamava pelo nome, ele realmente queria dizer algo importante- Sabe, eu realmente não tenho problemas, ao menos não mais. Você lembra de quando nos conhecemos? Lembra que eu disse que os meninos tinham me ajudado e ajudavam outras pessoas com seus problemas? -naquele momento veio um flash daquela cena na minha cabeça, e assenti a ele.- Alice, dos 6 aos 8 anos eu era vítima de bullying dos colegas, porque eu era o menor, o mais fraco, a vítima mais fácil, aquele que não tinha quem o defendesse! Foi um período difícil, eu fui desencorajado por mim mesmo e por eles a ir pra escola, porque eu sabia que ia sofrer com deboches, e até violência física! E então, o meu vizinho junto com os amigos dele, as três pessoas que eu menos imaginava que pudessem, me ajudaram a sair daquela situação; quer eles quisessem ou não, foi com o humor deles que eu me curei! Eu.. -ele parou por um momento e eu posso jurar que uma lágrima brotou em seu olho- Eu passei a me sentir seguro, e eu vi que eu estava bem, que era com aquela sensação alegre que eu queria viver todos os meus dias, eu vi que os outros alunos nada mais eram do que um problema que se resolvia ao ignorar. Eu sou amigo do Daniel há anos, mas eu sinto que nunca pude agradecer verdadeiramente por toda ajuda que ele e os meninos me deram. -ele parou por um momento e me olhou- Desculpa, eu nem sei porque contei tudo isso agora, isso provavelmente nem se compara ao que você sofreu.
Ele se levantou e saiu rumo à porta pra voltar pra casa, antes que saísse segurei seu braço e perguntei:
-Por que nunca me disse nada disso?
Em vez de responder ele fez outra pergunta:
-Por que nunca me contou da Rafa?
E assim saiu.
Depois que fiquei sozinha de novo, comecei a pensar:
Como um garoto forte, independente e seguro de si como Renan poderia ter passado por tudo aquilo e superado por completo?
Assim percebi; a vida não escolhe vítimas, somos todos vulneráveis ao sofrimento.
Simplesmente enterrar o passado e olhar pra frente pareceu tão simples pra ele, por que ainda era tão difícil comigo?

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