Prólogo

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-Vamos logo, Gabriela! -apressou Talles mais uma vez preocupado com os problemas de sua empresa. -Você vai chegar de novo atrasada na escola!
-Sabe, geralmente os pais não obrigam seus filhos queridos a irem a escola justo no dia em que completam a primeira quinzena de batalha familiar! -reclamei.
-É que nem todos os pais trabalham como eu para que os filhos tenham uma boa educação, como você! -falou ele.
Encarei meus olhos claros no espelho, que depois de uma noite mal dormida estavam azuis e apenas suspirei amaciando meus cachos nada definidos loiros quase castanhos. Ele não estava nem interessado nos meus estudos, como sempre, sua preocupação era em estar no escritório e fechar acordos milionários com chineses montados na grana. Mas resolvi não contrariá-lo neste ponto.
-A mamãe não me obrigaria. -resmunguei.
-Sua mãe não paga a mensalidade do seu colégio todo mês.
-Rá-rá, nem o senhor. -retruquei. -Eu estudo em uma escola pública!
-Não interessa!
-Queria que ela estivesse aqui. -murmurei para mim mesma.
-Você mais do que ninguém sabe que ela não está e que jamais estará. -falou meu pai duro.
Suas palavras me fizeram lembrar da verdade que ha muito tempo tentava esquecer.
Ser abandonada por sua mãe quando se tem pouco menos de oito anos não é algo fácil de superar. Mas eu não fiquei completamente sozinha. Ainda tinha o meu pai. Nós não tínhamos exatamente uma relação esperada entre pais e filhos, não sentávamos juntos à mesa, não tínhamos um diálogo. Depois de um tempo, aquilo tornou-se natural, estar sozinha não me afetava mais, era até reconfortante o silêncio do vazio.
Talles era a minha família, mas apesar de tudo, eu sentia falta de minha mãe, Mônica. Algumas pessoas dizem que eu me pareço com ela. Queria poder recordar de seu rosto, mas por alguma razão, toda vez que tento, me vejo em um bloqueio mental que não me permite recordar nada. Lembro a cor de seus olhos, seus cabelos, porém quando penso em seu rosto, não vejo nada além de um borrão sem forma, é frustrante.
Hoje porém, não choro mais como chorava a algum tempo atrás, mas a dor está ali, camuflada. Escondida atrás de sorrisos forçados e palavras alegres.
Não acho que vá chegar o tempo em que eu me esqueça disso, porém sonho com o dia em que esse fato não me afete tanto.
-Eu sei, pai. -murmurei fechando a porta do carro. -Eu sei.
Decidi limpar minha mente desses pensamentos. Sabia perfeitamente que ficar triste e pensar no assunto não traria nada de volta, nem mesmo impediria que se fosse.
Havia coisas mais importantes no momento. Talles tinha uma vida, Mônica provavelmente tinha uma vida, eu também precisava de uma. Talvez fosse bom começar por algum lugar, como por exemplo, a escola.
Não curto nada ter que estudar durante as féria, mas somos obrigados. Qual o motivo? Os nossos professores resolveram fazer greve bem no meio do ano letivo, e como toda moeda tem dois lados, nós alunos é que temos que nos ferrar para recuperar a coisa toda.
"Só mais dois dias" -era o que eu dizia a mim mesma quando meu pai me deixou na porta da escola, " dois logos e estressantes dias!".
Os corredores estavam vazios, eram nove da manhã, realmente como meu pai falou: eu me atrasei.
Os últimos dias de aula foram como de costume, horrivelmente chatos, só que piores. Agora entendo a choradeira das crianças para não ir para o berçário, elas pressentem o perigo. Sabem que depois daquilo vem a pré-escola, o ensino fundamental e o grau do terrorismo só vai aumentando. Mas finalmente pra mim isso acabou, pelo menos por aquele ano.
Quando cheguei em casa, depois de minha última aula como aluna do 9°ano, me surpreendi ao ver meu pai sentado no sofá da sala...Isso não era normal vindo dele, Talles sempre foi do tipo "ocupado demais para curtir um sofá-cama".
-Precisamos conversar.
-Diga! -sentei na poltrona em frente a ele.
-Como você mesma sabe, eu tenho negócios, não é mesmo?
Assenti.
-Viajo muito e você fica muito tempo sozinha... -ele parecia querer contornar o assunto -Eu irei viajar.
-Agradeço por me avisar, e boa viajem! -sorri da maneira natural que aprendera a criar todas as vezes em que sabia, era trocada por seus negócios.
-Não vamos voltar.
-O que? -engasguei. -Tá, me dê umas duas horas que eu arrumo as malas... -disse levantando e indo direção a escada.
-Quando eu disse 'nós', me referia a mim e a Luce. -ele disse, eu parei antes mesmo de subir o primeiro degrau e olhei para ele que também estava em pé.
-Do que você está falando? Quando foi que deixei de fazer parte do 'nós'? E quem é Luce? -disse indignada demais para pensar direito.
-Eu e Luce vamos nos casar. E não seja dramática, sabia perfeitamente que isso iria acontecer. -falou Talles -Não achou que eu fosse ficar sozinho e vivendo em função de você a vida toda, achou?
-Eu não posso crer que meu PAI está noivo e eu não sabia...Pior, ele vai casar e eu sou a última a saber!
-Baixa esse seu tom, mocinha! -ele falou.
Só aí percebi que estava parecendo uma histérica. Tratei de me acalmar um pouco antes de continuar. Afinal, Talles estava certo. Eu sabia que isso iria acontecer, e eu queria que ele fosse feliz. Só não esperava que fosse tão cedo.
-Quantos anos ela tem? -perguntei.
-A Luce tem 19 anos e nós estamos juntos a quatro anos. -ele falou com tranquilidade.
Que porcaria era aquela? Dezenove? Isso quer dizer que essa garota tinha a minha idade quando eles começaram. Que nojo!
-Dezenove anos pai? Ela poderia ser minha irmã... A sua filha! -falei horrorizada. -Você não tem vergonha? Ela é quase uma criança!
-Mas ela não é! E nunca senti vergonha, não devo satisfações à você. -gritou meu pai. Ele jamais havia se alterado comigo!
-Gritou comigo? -falei sem acreditar. -Não posso crer que você gritou com sua única filha, por causa de uma qualqu... -não pude terminar a frase antes que meu pai me acertasse o rosto.
Minha pele ardeu e queimou onde recebi a pancada. Talles nunca havia levantado a mão para mim. Nunca, até essa daí chegar. Pelo visto, aquela, era só mais uma das coisas que mudaram entre nós.
-Arrume suas malas porque você vai para um internato. -eu nunca tinha visto meu pai tão bravo.
-Que? -falei chocada.
-Você poderá estudar por lá até se formar, aí já será maior de idade e poderá seguir sua vida como bem quiser. De preferência, bem longe da gente!
Senti meu peito apertar, ele não podia me abandonar. Ele só poderia estar brincando comigo, não faria isso, não teria coragem.
Talles levantou as sobrancelhas.
-Eu não estou brincando. Aliás, nunca falei tão sério na vida... Filha, você tem que entender que eu só quero ter uma vida! Quero ser feliz. -ele falou.
-E pra isso você precisa ferrar com a minha? Pai, talvez eu possa ser amiga da Luce. Talvez, -lágrimas já estavam rolando com a lembrança das noites em que meu pai viajava e eu ficava chorando sozinha em meu quarto e me perguntando o porquê de minha mãe não me querer mais. -Talvez eu possa...cuidar dos meus futuros irmãozinhos, fazer parte dessa vida, e quem sabe até ser feliz também.
Meu pai balançou a cabeça negativamente.
-Não. -ele disse - Na minha vida não há mais espaço para você, Gabriela. -ele falava tudo com tanta convicção que me fez pensar em quantas vezes ele planejava tudo.
Limpei minhas lágrimas. Me levantei do degrau em que acabei me sentando e o encarei, olho no olho. Ele não tinha nem um pingo de remorso ou tristeza por o que estava fazendo comigo.
Chega! Pra mim chega! Eu não aguentaria mais nem um minuto ouvindo as grossas palavras disparadas por ele.
Subi pulando os degraus de dois em dois para meu quarto e me joguei de bruços em minha cama, ouvi Talles gritar do andar de baixo, apenas me deixando mais indignada.
Eu não sentia mais o chão sob meus pés, estava perdendo tudo, absolutamente tudo, perdi minha mãe e tudo o que poderia lembrar ela, desde fotos até os forros de cama beges que ela tanto amava, Talles queimou tudo. Só eu sei o quanto o odiei por isso na época. Agora perco meu pai e a única coisa que mais remotamente poderia me lembrar de quando tinha verdadeiras alegrias, a casa onde vivi por todos os meus 15 anos, onde eu nasci, onde costumava espiar os beijos dos dois e depois ficar rindo debilmente.
Como pude viver tantos anos sob o mesmo teto dele e nunca ter percebido o que ele realmente era?! Como posso ter o sangue de um monstro que é capaz de abandonar a única filha sabendo que no mundo não há ninguém por ela?! Sentia nojo de mim mesma por partilhar daquele DNA.
Eram tantas as lembranças, tantas as emoções, tanta saudade de um tempo que nunca mais iria voltar.
Foi assim que meu mundo todo ruiu sobre mim e eu acabei muito machucada. Agora eu não tinha nada, estava sozinha. Mais só do que nunca. Esse cara que eu conhecia como pai que ia embora, levava com ele tudo, e deixa apenas uma garota sozinha e vazia.
Jamais seria a mesma, ninguém nunca mais me machucaria daquela forma, eu esconderia tão bem meu coração que nunca mais o encontrariam. Ninguém...


Cadê Suas Asas, Anjo?Where stories live. Discover now