28b. Enfrentando o caminho (Avá Verá)

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Observo os outros. Eles nem se aperceberam da morte do companheiro. Estão tomados demais pelo êxtase para darem conta do que acontece em volta. E isso é bom para mim. Pego uma outra flecha. Coloco novamente na zarabatana. Procuro por quem está mais acessível. Escolho o que está mais apático, aparentemente muito bêbado, ou tomado. Me posiciono. Retiro a proteção da flecha e repito o que fiz com a primeira. O homem dá um urro e cai. Já no chão, estremece uma última vez e morre. De sua boca, sai uma mistura de sangue, com uma gosma escura.

Volto a observar o grupo. Eles ainda não se deram conta das mortes. Agora tenho só mais duas flechas envenenadas. E um coração que dói e está acelerado em meu peito. Os homens estão cada vez mais intensos. Cortam, rasgam pedaços de minha mãe e os disputam entre si. O sangue dela é apanhado em vasilhas e é tomado aos goles por todos os que estão ainda de pé. Eles riem embriagados, misturam o sangue com uma bebida alcoólica. Estão insanos.

Repetindo todo o processo, consigo eliminar mais dois. Eles caem, convulsionam e depois ficam inertes como os outros. Mas as flechas da zarabatana acabaram, e ainda tem muitos deles lá. Agora terei que fazer uso das flechas normais. E, com isso, terei que ser mais preciso. O movimento deles já não é tão intenso. Estão muito embriagados e entrando em estado de torpor e sono. Penso se é mais conveniente esperar que durmam ou se já tento acabar com tudo de uma vez. Decido-me pela última opção. Acho que é preciso fazer isso o mais rápido possível. Existem muito mais deles que ainda não estão aqui. E eles podem chegar a qualquer momento.

Pego meu arco. Escolho uma flecha e vejo atentamente qual deles atingir primeiro. Escolho o que está mais atrás. Me posiciono, miro a região do coração. Se ele estivesse totalmente parado, seria fácil, mas ele se movimenta, ainda que de forma mais lenta. Agradeço em meu coração a xe Járy pelo preparo que tive nos últimos meses. A insistência dos homens do clã em que acertássemos alvos quietos e em movimento. Agora isso tudo me é muito útil. Atiro a flecha. Atinjo o coração. O homem leva um baque, um choque. Fica quieto uns segundos, de olhos arregalados. Como que a procurar o que o atingiu. Mas já não tem mais condições de saber. Sangue começa a escorrer de sua boca quando finalmente cai.

Esqueço meus sentimentos e me concentro somente na tarefa que tenho de fazer o mais rápido possível. Então dou um passo, mirando o meu próximo alvo, as flechas aparecem instintivamente em minhas mãos e as lanço, uma após outra, em direção aos homens que caem paulatinamente, como folhas secas. Miro sempre em seus corações, pela frente, pelas costas, faço minha colheita como uma enchente.

Quando atiro minha penúltima flecha, percebo que chamei a atenção dos dois que sobraram. Resta agora somente uma flecha e atiro-a. Mas o ser maldito em que mirei consegue se desviar. Ele está em choque com o meu ataque, mas ainda assim, corre em minha direção. Conseguiu enxergar de onde atirei as setas e vem para mim, em corrida desabalada, chamando seu comparsa. O outro acorda do seu torpor lentamente e grita ao ver os mortos. Olha seu irmão correr para a abertura onde me encontro.

Fico assustado, mil coisas passam por minha mente. Olho o tamanho deles, seus músculos e lembro que foram eles que assassinaram e esquartejaram minha mãe. A fúria me toma, resolvo enfrentá-los. Por ser mais jovem, percorro mais rápido a distância entre mim e umas lanças que estão escoradas ali perto e me armo com uma. Seguro-a forte em minha mão, em posição de ataque. O homem chama seu irmão e ambos me cercam. Tento impor medo, emitindo ruídos de animais e gritos de guerra com a lança em riste. Eles riem de mim.

— Não se preocupe, filhote, depois de sua irmã, será sua vez. Você ficará por último e assistirá a tudo. Raaaaa! – grita para mim um deles.

O da direita lança-se em minha direção, e então o acerto com uma estocada perto de sua virilha com a lança afiada. O choque me faz recuar, parece que bati numa pedra. Ele sangra e me olha com ódio, eu retribuo seu olhar. O da esquerda levanta as mãos, pulando como um símio e vem para mim, junto com o outro, que se recupera, ainda que manquejando de uma perna. Calculo o momento exato e me abaixo, acertando o que já estava ferido com a lança, quase transpassando-o de cima a baixo. Ainda giro ela com força, enfiando-a mais dentro dele, aumentando seu ferimento, que jorra sangue. Ele cai gritando, enquanto o outro, no empuxo da corrida e da bebida, passa raspando por cima de mim e tropeçando no ferido. Ele se volta atônito, e quando se dirige ao companheiro, nota que é tarde demais, ele morre como um porco espetado.

Exultando em silêncio, mas ainda assustado, retiro a faca que guardo em minha cintura e me posiciono esperando seu ataque. Ele retorna gritando ensandecido e tento escapar de seu abraço. Minha respiração está rápida, meu sangue percorre meu corpo, queimando-o, me deixando alerta. Meu coração bate forte. O homem me evita desviando-se e dá um golpe com sua perna esquerda, me derrubando. Aproveito a queda e rolo pelo chão me arranhando e me sujando de terra. Reajo e fico de pé imediatamente. Quando ele retorna, chuto terra e areia que o cega por momentos. Aproveito e impulsiono minhas pernas e me trepo nas costas dele desferindo vários golpes. O ódio me cega. No entanto, ele é forte e consegue impulsionar-se para trás, caindo sobre mim. O ar esvai-se de meu peito, a dor é grande, temo ter quebrado alguma costela, fico com a cabeça zonza. Desesperado, esperneio e chuto sua cabeça até que ele me solta.

Me levanto devagar, me erguendo de joelhos. Quando consigo ver e ouvir, vejo-o arrastando-se para fora do campo de batalha. Levanta-se. Está sujo de poeira e suor como eu. Cambaleio em direção a ele e grito com minha faca em punho. O vento parece responder ao meu brado, e me lanço em seu encalço. Ele está imóvel, sangue escorre dos ferimentos que provoquei. Quando estou perto dele, ele move seu punho em direção a mim, abaixo-me e estico minha perna, acertando-o na barriga. Agora é a vez de o ar escapar de seus pulmões, ele se curva, e ergo meu joelho, acertando seu rosto. Escuto o som de algo quebrando, talvez seu nariz. Abaixo meu cotovelo em sua cabeça, e ele se estatela no chão como uma fruta podre.

Pouso minhas mãos em minhas pernas e respiro fortemente. Nesse momento, ele me dá uma rasteira que me faz cair de lado, machucando meu braço. Faço uma acrobacia, e quando ele vê, estou em cima de seu peito. Ele me olha com olhos apavorados, e pela primeira vez vejo pânico em seu ser. Lembro-me de minha mãe e minha irmã. Chego a me lembrar da jovem grávida. Minha mente ferve com pensamento do quanto cada uma delas devem ter sofrido nas mãos deles. Então corto seu pescoço e caio para o lado esgotado.

Minhas mãos ainda tremem. Tento respirar mais pausadamente. Devagar, vou me recuperando. E só então me ergo totalmente. Estou sujo do sangue do homem. Da minha faca, escorrem gotas de vermelho vivo. Limpo a faca em minha veste, repugnando. Olho ao redor, vejo Kunhã Rendy na jaula e vou em direção a ela. Ela ainda está quieta, parada, não se mexe. Me aproximo.

Xe sy! Nãããããão!!!!! – um grito desesperado me faz voltar imediatamente.

Mitã'ĩ está soluçando e gritando em frente aos restos mortais de nossa mãe.


2.075 palavras 

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora