16b. Perdido (Avá Verá)

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Preciso saber onde estou, preciso me encontrar. Então resolvo subir em uma árvore para ter uma visão melhor dos arredores. Preciso descobrir, pelo menos, o lado onde o sol está nascendo, porque a partir disso, talvez eu consiga saber a direção do rio. E achando o rio é só seguir em direção contrária à correnteza, eu acho, e acharei o nosso acampamento.

Bom, acho que a árvore onde fiz o fogo é bem alta, pois seu tronco é enorme. Parece-me a maior dos arredores. O difícil, eu penso, é subir nela. O tronco é muito grosso, e os galhos são muito altos. Tenho duas opções, pegar um cipó grosso e forte, colocá-lo em volta da árvore amarrando-o com um nó e subir assim, ou a outra opção é subir em uma árvore próxima que tenha galhos mais baixos e, no alto, passar para essa árvore. Sou treinado para as duas opções, mas acho que é mais rápido eu subir em uma árvore próxima e, no alto, passar para a árvore escolhida.

Escolho uma boa árvore, bem próxima da outra que quero alcançar, e subo por ela. Enquanto subo, pássaros, micos e pequenos macacos se movimentam fugindo de mim. Não sou tão rápido como meu pai, mas consigo fazer isso com bastante eficácia. Hoje, para mim, é muito fácil subir em árvores, e rapidamente já estou bem no alto. Escolho um galho que vai em direção a outra árvore e vou por ele. Observo bem um galho da outra árvore, me posiciono e, num impulso, pulo para ele, ficando momentaneamente pendurado. Mas, movimentando meus braços, eu sigo pelo galho e tranquilamente alcanço o tronco. Agora é fácil continuar a subida até o topo. Vou trocando mãos e pés de forma intercalada e cada vez em outro galho mais alto. Logo estou no topo da árvore.

Olhar para baixo dá um certo arrepio. A árvore é muito alta! Mas olhar para frente e para os lados dá uma visão linda e detalhada. É um tapete quase infinito de verde. Copas de árvores de várias formas, alturas e texturas. O céu está limpo. Nenhum sinal de fumaça ou neblina. Muito limpo mesmo. O bom é que isso permite ver longe, de todos os lados. E vejo o lado onde o sol está subindo. Então já sei que direção tomar para chegar ao rio, ainda que não consiga vê-lo.

Tenho pressa em voltar e desço rapidamente. Ao descer, percebo um ninho de pássaros com alguns ovos. Pego dois. Já tenho o que comer antes de sair.

Já no solo, coloco os ovos em uma pequena vasilha feita de barro, que tenho em meu sapikwá. Pego a moringa de água e uso um pouco, o suficiente para cobrir os ovos, e coloco a vasilha no fogo. Não demora muito e sei que os ovos já devem estar bons. Retiro-os da água e da vasilha, esfriando e descascando-os em seguida. Não são muito grandes, mas sei que vai dar para aguentar um pouco até eu encontrar outra coisa para comer, o que eu acho que não será difícil.

Bom, é hora de ir. Apago bem o fogo e depois o cubro com terra. Pego minhas coisas e começo a caminhada em direção contrária ao local onde o sol nasce. Não sei quanto tempo demorarei para chegar ao rio, mas sei que vai demorar um pouco, porque não o vi quando subi na árvore.

Vou andando entre árvores, arbustos, raízes e cipós. Andar pela mata, durante o dia, não é difícil para mim. Tudo é muito familiar: tipos de árvores, sons de pássaros e animais, folhas secas sob meus pés, então rendo bastante. Depois de um bom tempo, finalmente alcanço o rio. Graças a Xe Járy, eu não me perdi e não me enganei, mas me demorei muito para chegar aqui. Percebo que o sol está bem acima de mim. Agora, com o rio ali, é mais fácil saber para onde ir. Só não sei a que distância estou de minha família. Preciso continuar para chegar onde está minha família antes de escurecer. Não imaginava que tinha me distanciado tanto.

Agora é minha barriga que acusa que o dia está em seu meio. Estou com fome. Preciso comer alguma coisa. Decido matar um pássaro. Pego meu arco e posiciono uma flecha. Tem muitos pássaros acima. E também outros animais. Mas alguns eu não posso matar, porque estou em tempo de iniciação ainda. Escolho um pássaro, atiro uma flecha, o acerto, e ele cai morto. Outros se assustam e voam em revoada. Vou até onde o pássaro que matei caiu e o apanho. Escolho novamente um local e faço um fogo. Limpo o pássaro e o asso. O cheiro que vem ao meu nariz vai ficando gradativamente mais atrativo. Finalmente percebo que ele está bem assado e o como. Agora sim, estou pronto para continuar. Apago o fogo e novamente faço o ritual de verificação se está bem apagado e o cubro com terra. É hora de continuar. Como não tenho uma canoa aqui, vou seguir pela mata, mas o mais próximo possível do rio.

Ouço um barulho. Parece um pio de pássaro. Ou um assobio, não sei ao certo. Me recosto rapidamente a uma árvore e preparo o arco. Ouço de novo o barulho. Parecem passos. Mas passos muito leves. Continuo encostado na árvore com o arco retesado. Então vejo um ser se materializando em forma humana. Não sei se é um avaetê, ou um ma'etirõ. Mas sei que não adianta atirar flecha, o que pode o enfurecer ainda mais. Desarmo o arco, tento encontrar, rapidamente em meu sapikwá, tateando com a mão o meu jegwaká. Encontro-o e o coloco. Procuro também os colares sagrados, colocando-os. Ainda preciso me pintar de urucum. O ser está se aproximando. Ele é alto, forte e está enfeitado. Usa colares coloridos com sementes e penas e outros enfeites nos tornozelos e braços. Antes que eu consiga encontrar a tintura de urucum, ele já está do meu lado.

— Avá Verá... você aqui... E sozinho. – Ele fala, me encarando e andando em volta de mim. Sua voz é forte, intensa. Penetra em mim como um fogo que aquece, queima.

— Quem é você? Como sabe o meu nome?

Me assusto principalmente porque o ser sabe o meu nome de batismo. Isso não é bom. Nunca é bom que esses seres saibam o nosso nome de batismo. Eles podem usá-los para o mal. Se eles forem do mal.

— Não sabe quem eu sou, Avá Verá? – ele diz, e algo em sua voz me soa de forma estranha e penetra cada vez mais em mim. Quase como se algo material viesse com sua voz e entrasse em mim – Sou enviado dos Nhande Ryke'y. Tenho algo para você.

Eu sou um iniciado de Nhande Ryke'y, então sou atraído pelo que ele tem para me dizer. Ou que quer me entregar.

— Eu vou lhe contar o nhembo'e (reza) para purificar o tempo, esfriar o fogo e as doenças.

Dizendo isso, ele já tem na mão a linha branca dele. Ele a pega e veste em mim. De uma forma tão rápida e mágica, que eu não tenho tempo nem de entender direito o que ele está fazendo. Ele movimenta suas mãos e uma fumaça branca sai da mão dele. Como que brotando dela. Ele manuseia a fumaça como se ela fosse um fio de linha e erguendo-a sobre a minha cabeça, a veste em mim.

E antes que eu diga alguma coisa, ou possa sequer olhar para o que ele está fazendo, ele desaparece. Se desfaz como a neblina.

O seu fio mágico e sua fumaça começaram a agir em mim. Percebo isso imediatamente depois ao desaparecimento dele. Sinto como se uma magia estivesse entrando em mim, me esquentando, me queimando por dentro e fora. Mas ao contrário do que eu esperava, começo a me sentir mal e não bem. Sinto dores intensas na região do meu estômago, como se estivesse sendo esfaqueado. Me curvo sobre meu corpo e começo a tremer e gemer. Uma dor intensa vai tomando conta de mim. Só então me dou conta de uma coisa. O ser que me abordou não deve um enviado de Nhande Ryke'y. A dor aumenta ainda mais. Meu estômago está queimado e revirando. Sinto que vou vomitar. Se o ser que me vestiu não é um avaetê enviado de Nhande Ryke'y, quem é ele então? Já não tenho tempo de pensar e responder para mim mesmo essa pergunta, porque tudo está rodando. Começo a vomitar. E o que sai não é o que comi, e sim uma gosma escura. O mundo roda mais e mais. Não consigo mais me manter em pé. Sinto que vou cair. O mundo escurece. Apago.

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— Filho, filho, acorda!

Parece que é meu pai falando comigo. Mas não consigo abrir os olhos. Não consigo me mexer. A dor é tão intensa em meu estômago, que é como se algo estivesse me arrebentando e saindo para fora de mim. O mundo vai sumindo de mim.

Parece que estou sendo erguido, que alguém está me tomando em seus braços. Mas não consigo ver quem é. Não consigo abrir os olhos. Estou desaparecendo, sumindo...

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Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora