25a. Em território estranho - (Avá Verá)

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Me volto para a porta principal. Todos nós nos voltamos. E por ali, eles começam a entrar. Um a um. Enormes, fortes, com os corpos pintados de uma tonalidade amarelada, com manchas pretas lembrando a pelagem da onça pintada. No nariz, possuem um furo por onde passa um osso e diferentes enfeites por todo o corpo: colares de ossos e dentes de animais, brincos de madeira. O corpo é tatuado em várias partes, com riscos diferentes, alguns tem estranhas cicatrizes. Estão armados com arcos e flechas, tacapes, lanças. São muitos, dezenas. Estão molhados da chuva e trazem carne de caça. Pedaços de uma queixada que, aparentemente, cortaram para melhor transportar. Um a um, cumprimentam a avó. A turba é composta só de homens. Alguns mais velhos, outros mais jovens e também adolescentes. Entregam à avó a caça que trouxeram.

De repente, em meio a eles, surgem duas crianças. Aparentemente são dois meninos, mas bem pode ser um menino e uma menina, ou duas meninas. Seus cabelos são grandes e emaranhados e aparentam ter a mesma idade, pois têm o mesmo tamanho. Têm colares no pescoço e outros enfeites nos braços e tornozelos. Como a jovem grávida, não têm os narizes furados, nem as tatuagens e cicatrizes. As crianças se aproximam da senhora idosa e pedem sua bênção. Ela os abençoa e os abraça. Por instantes, percebo um carinho grande dela por eles.

Eles, então, se afastam e vão para a outra extremidade da casa grande, onde a moça grávida já está de volta, se assentando em sua rede. As crianças vão até ela, pedem a bênção. Ela os abençoa e abraça. Então se levanta, pega as coisas das crianças, pequenos arcos e flechas, seus sapikwás, e pendura. As crianças permanecem com as facas que têm à cintura. A moça pega panos e as enxuga, pois eles também estão molhados da chuva. Tira seus trapos úmidos e troca por outros secos. Arma as suas redes, onde elas se sentam. Falando baixinho, de forma que não dá para a gente ouvir, ela lhes oferece as frutas pretas, que parecem jabuticabas silvestres. A crianças ficam felizes, chupam as frutas e dão risadas de coisas que conversam entre si e com a jovem. Ela tenta dar um jeito no bagunçado cabelo das crianças, o que consegue fazendo duas tranças em cada uma delas. Agora já sei que são dois meninos. E eles são muito parecidos, como se fossem gêmeos. Será que são filhos dela? Não, não podem ser. A jovem não tem mais do que quinze invernos e as crianças aparentam ter sete ou oito. Não há como eles serem filhos dela.

Me volto novamente aos homens e seu barulho. Eles estão olhando para nós e manifestam surpresa. A avó se adianta:

— Eles chegaram agora há pouco. Instantes antes da chuva começar. Pediram para passar a noite aqui.

Eles nos cumprimentam, tem olhos carregados. Todos, ao notarem minha irmã e mãe, as olham com olhar de desejo. Tenho medo. Na verdade, estou apavorado imaginando do que eles podem fazer a elas. As histórias contadas sobre estranhos clãs falam de estupros, abusos e morte. Nos encaram.

Uma a um, eles vão se dirigindo às suas redes, se enxugam e se assentam nas redes. Alguns deles ajudam a velha na preparação da comida.

— E então – um deles se dirige a mim – O que traz vocês a esses lugares remotos? Pessoas de outros clãs são raras por aqui.

Penso se vale a pena dizer a verdade ou se devo mentir. Mas chego à conclusão de que não tenho outra opção e então falo a verdade:

— Nosso pai desapareceu e estamos procurando por ele. Os sinais que temos encontrado, deixados por ele, nos trouxe a esse território. E com a ameaça de chuva, resolvemos chegar aqui.

Bom, é uma meia verdade. Realmente os sinais de nosso pai nos trouxe a esse território, só que não a essa casa. A vinda para esses lados foi deliberadamente uma escolha errada que fiz, da qual estou sinceramente arrependido. Quero consertar isso o mais rapidamente possível. Assim que for possível, quero tirar minha família deste lugar. Assim que a chuva der uma folguinha.

— Bom, sejam bem-vindos! – continua o homem que puxou conversa comigo. – Podem ficar aqui pelo tempo que acharem necessário.

Percebo que a maioria dos homens estão com olhos fixos em mim.

— Acho que seu pai não veio por essas bandas, não. Se tivesse passado por estes lados, saberíamos. Mas para onde seu pai estava indo? – agora quem me questiona é um homem um pouco mais velho do que o outro.

— Na verdade, o nosso pai foi raptado, ou capturado. Não sabemos exatamente o que houve com ele. Alguns seres desconhecidos, aparentemente não humanos, o levaram. Mas acredito que estamos perto de encontrá-lo. Pelo menos, estou com essa esperança.

— Huum! Entendi. – Acentua o último homem a falar comigo. – Bom, fique à vontade em nossa casa. Não ficamos muito por aqui durante o dia. E muitas vezes, nem chegamos a voltar à noite. Hoje viemos mais cedo por causa da chuva e porque os pequenos estavam com a gente. Estamos ensinando eles a usar as armas para caçar. Mas ainda são muito pequenos. Não têm muita habilidade.

Olho para as crianças, e elas estão olhando para nós. Depois voltam ao que estavam fazendo com a moça grávida.

— Qual é o clã de vocês? Estão viajando há muito tempo? – volta a perguntar o homem que insiste em estabelecer um diálogo comigo.

— Somos do clã Te'ýi, do território Yvy Mbyte Pygwa, o território do centro da Terra. Já tem muito tempo que saímos de nosso território e estamos à procura de nosso pai.

— Acho que conhecemos o seu clã. O clã dos silenciosos.

Achei interessante a observação dele. Em nos caracterizar assim. Acho que é uma boa caraterização.

— E o clã de vocês? Qual é o nome?

Eles se entreolham, e eu tento entender o que o olhar quis dizer, se eu seria ingênuo de não conhecer, ou se eles achavam bom que eu não conhecesse.

— Pensei que vocês soubessem. – Diz um deles, afinal. Acho que precisaria de uns meses aqui para saber quem é quem. – Somos o clã Jagwaretê Ypy.

"Jagwaretê Ypy...", eu penso. O clã das onças originárias. E me dou conta de que nunca ouvi desse clã. Olho para minha mãe, na esperança de que ela saiba quem são. Mas nada. Seu olhar é de um tom negativo. Ela também nunca ouviu falar desse clã. Fico pensando no significado do nome e tento entender.

Os homens do clã continuam conversando comigo. Perguntas simples, sem nenhum envolvimento maior, até que a comida deles fica pronta. Eles então comem silenciosamente. A chuva continua forte lá fora, e a noite cai sobre a casa grande. Todos se preparam para dormir. Minha insegurança, medo e desconfiança dissipam um pouco. Mas não totalmente. Aliás, como explicar a ausência quase total de mulheres? Bom, acho que pode acontecer, já que o contrário nos é contado nas histórias: o clã das Amazonas é composto só de mulheres. Então pensamentos passam por minha mente, na tentativa de lembrar desse clã, de alguma menção a ele. Mas nada.

Enfim, todos se preparam para dormir. Nós também. Minha mãe está com Mitã'ĩ em sua rede, Kunhã Rendy em uma outra rede. Quero estar por perto, para protegê-las caso algo aconteça. A crianças, aparentemente gêmeas, dormem em redes perto da jovem grávida. Eu continuo no chão, perto da rede de Kunhã Rendy e xe sy. Quando estou quase pegando no sono, percebo um barulho na rede de minha mãe. Mitã'ĩ desce da rede e vem para onde estou. Se abaixa e fala num sussurro em meu ouvido:

— Posso dormir aqui com você, mano?

— Claro! – eu respondo.

Ele se deita perto de mim, eu o cubro e ficamos ouvindo o barulho da chuva lá fora. Agora os raios não tão fortes e os trovões leves. Gosto de chuva. Ainda que longe de minha casa. 

(Continua) 


1340 palavras 

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora