7. Kunhataĩ-ma: tornando-me uma moça (Kunhã Rendy)

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Acordo depois de uma noite bem dormida. Me mexo na rede para esticar os braços, pernas e relaxar o corpo. Tento me lembrar do que sonhei. Mas não consigo. Sei que sonhei, mas tudo que me vem à mente são algumas sensações. O fogo crepita. Ou melhor, vários fogos diferentes crepitam. Algumas famílias já estão de pé, outras ainda não. O nosso fogo está bem aceso, indicando o cuidado constante de minha mãe.

Xe kyvy'i, meu irmãozinho, dorme na sua rede, agora um pouco afastada da minha, devido ao meu estado, mas não vejo minha mãe. Procuro-a com os olhos e não a localizo. Ela não está na casa grande. Pelo menos, não está no nosso fogo familiar e nem ao alcance de minhas vistas.

Sinto um desconforto na região de minha barriga. Mas desta vez não é a cólica que senti nos últimos dias, e sim fome. Olho novamente para o nosso fogo. Não tem mandioca e nem batata assando. Então é isso, minha mãe está na roça providenciando essas coisas.

Sinto pena dela. Tem sido pesado para ela nestes últimos dias que xe ru (meu pai) não voltou para casa. Ela tem que cuidar de mim, de meu irmãozinho, dar conta de providenciar as ervas para serem usadas no meu banho e para os chás que preciso tomar, além do nosso alimento e lenha para o fogo. Queria poder ajudá-la, mas não posso sair, não posso ir na roça, não posso tocar no alimento. Também não posso passar debaixo de árvores frutíferas. Me lembro de minha Jarí (avó) contar como um tio meu perdeu toda sua roça de mandioca, além de outras coisas que ele tinha plantado, porque minha prima acompanhou sua mãe até à roça.

Xe kyvy'i está acordando. Ele sorri para mim. Ele é tão lindinho! Amo esse sorriso dele. Sempre penso que ele puxou a meu pai neste sentido. O dois gostam de sorrir, e o sorriso é igual. Queria poder ajudá-lo a descer da rede e levá-lo para banhar. Mas também não posso fazer essas coisas: nem posso erguer peso, nem tocar em alguém do sexo masculino, ainda que seja meu irmãozinho. Uma tia vem, o ajuda a descer e o leva para tomar banho no nosso córrego.

Observo eles saindo pela porta que dá para o lado do nascimento do sol, onde está o altar de Xiru. Homens dançam e cultuam em frente ao altar. Isso deve ser feito sempre. Às vezes de manhã, às vezes à noite ou durante toda a noite. Dependendo do tempo que se está passando. No altar de Xiru, ficam depositados os instrumentos usados nas rezas e cânticos rituais, quando estes não estão sendo utilizados: a cruz, os mbarakás, as takwáras rituais. Os sons dos pés seguem o ritmo dos mbarakás. Ou os mbarakás seguem o ritmo dos pés. Gosto desses sons.

Os homens terminam a reza, entram para casa grande e cada uma vai para o seu fogo familiar comer a batata e mandioca assados. Alguns tem carne de caça ou peixe.

Uma tia me olha. Vê que eu os estou observando comer. Imediatamente ela fala alguma coisa para seu marido. Ela fala baixo e eu não entendo o que disse, mas sei que está falando de mim. Abaixo o olhar, envergonhada. Não que eu tivesse cobiçando a comida deles ou mesmo desejando. Foi algo só contemplativo, espontâneo, natural. Mas sei que eles não entenderão assim. Estou em teko aku, um estado quente, e nessa condição, um simples olhar pode indicar a desgraça de alguém, ou de uma planta, ou até de uma roça inteira.

Ainda de cabeça baixa, percebo a aproximação de alguém. Não ergo meu olhar e nem fito a pessoa, mas sei que é minha tia que me viu olhando para eles. Ela tem na mão uma vasilha com carne de peixe assada, mandioca e batata e me oferece. Aceito e agradeço baixinho. Meu coração e corpo agradecem, mas sei que ela só trouxe essas coisas somente para "apaziguar" o meu estado. Para "esfriá-lo" e não sofrerem as consequências de um descuido de me provocar a ira. Ela volta para o seu fogo familiar e voltam a conversar em voz normal. Agora não falarão mais sobre o assunto.

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora