29. Quer guavira, mamãe? (Avá Verá)

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O meu irmãozinho está diante do corpo de nossa mãe. Ele está imóvel, duro, não se move. Nem eu tampouco. Não tenho mais ação. Seus olhos estão fixos, parados. Olho para ele, para minha irmã, desacordada e ainda presa, e para a nossa mãe, ou o que sobrou dela. Somente agora tenho como observá-la com mais atenção. E o que eu vejo faz meu corpo gelar, estremecer e minhas pernas perderem as forças de novo. A cabeça dela está quebrada, seus olhos esbugalhados quase saindo para fora da órbita, o rosto está deformado em uma mistura de pele, pele roxa e inchada, cheia de hematomas, sangue seco e algo que penso ser suas entranhas. Faltam partes de braços, pernas. A mão e pés não estão mais ali. O sangue não escorre mais. Por estar sobre o calor da pedra aquecida, sua pele está vermelha. O peito está aberto, rudemente, vazio e não tem mais o coração. A barriga também está aberta e sem o que deveria estar ali, suas vísceras. Parte está dependurada, caindo sob o corpo, parte rasgada e parte foi comida pelos homens canibais.

Mitã'ĩ começa a se mover tropegamente. Seus olhos ainda parados, inexpressivamente abertos. Se movimenta em direção ao corpo. Continuo sem forças para reagir, meu corpo não aceita o comando de meu cérebro no sentido de impedir meu irmãozinho. Estou parado olhando, alternadamente para ele e para o espaço, perdido e sem reação.

Então meu irmãozinho se aproxima, ainda mais, do que um dia foi nossa mãe. Ele parece não entender o que vê. Suas mãozinhas vão ao rosto distorcido dela, e ele a toca com suas mãos pequenas, como em um carinho medroso. Lágrimas escorrem do meu rosto como uma cachoeira silenciosa. Minha mente é um turbilhão de pensamentos de culpa, tristeza, frustração, desesperança e de raiva contra mim mesmo. Tenho vontade de morrer. Queria estar no lugar de minha mãe. Deveria ser eu. Eu merecia isso.

A mãozinha de Mitã'ĩ desliza mais pelo seu rosto.

— Mamãe! – ele a chama suavemente, como que tentando acordá-la. – Mamãe! – ele insiste, e sinto meu corpo perder as forças novamente. Meus ombros decaem sem forças.

Ele toca a testa dela, afasta os cabelos sujos de sangue do seu rosto.

— Mamãe! Acorda! Vamos embora. Vamos pegar a xe rendy, que tá dormindo, e vamos embora. O meu irmão vai levar ela. Não vai, mano? – a última frase ele diz virando-se para mim.

Minha cabeça balança afirmativamente de forma automática. Não sei mais o que estou fazendo. Não consigo me controlar, controlar meus pensamentos. Não consigo colocá-los em ordem. Um zumbido toma conta de minha mente, como uma estática, as imagens se sucedendo rápido, sem sucesso.

— Mamãe, nós encontramos guavira. – Meu irmão continua conversando com ela. E as lágrimas descem em mais abundância pelo meu rosto. – Você gosta muito de guavira, né? A gente só não trouxe porque o mano teve que vir correndo para ver vocês. Né, mano? – novamente se dirigindo a mim. Não respondo.

— Mamãe, acorda! – insiste novamente. – Você tem que acordar porque a xe rendy tá dormindo também. E xe ryke'y não vai conseguir carregar as duas. Né, xe ryke'y? – novamente falando comigo a última frase. Mas agora já há lágrimas de desespero e medo em seus olhos. Ele está se dando conta do que há ali. Está saindo do estado de rejeição dos fatos.

Suas mãozinhas agora se dirigem ao local onde fora a barriga da mamãe. Angustiado, pega partes do intestino, que estão penduradas, e coloca no lugar, arrumando-as da melhor forma possível. Suas mãozinhas ficam vermelhas de sangue. Passa a mãozinha pela barriga dela, como que a limpando. Volta com a mão para o rosto. Novamente fazendo carinho ali.

— Tá doendo, mamãe? Você se machucou?

Lágrimas fortes e pequenos soluços agora escorrem molhando seu rostinho, fazendo com que seu peito levante e abaixe.

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora