3b. Reclusão: tempo de aprendizado (Kunhã Rendy)

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Um barulho desvia minha atenção. É meu irmãozinho, ele está mexendo no pilão. Reparo que suas mãozinhas estão sujas, seus pezinhos também. Se estivesse fazendo calor, provavelmente ele estaria no rio agora, com as outras crianças. Mas com o frio, ninguém se anima. Estão todos rodeando os fogos domésticos. Alguns assam batata, ou mandioca. Outros assam carne e peixe. E quando eles assam carne de caça, é o momento mais difícil para mim. A maioria da carne de caça me é proibida por eu estar em estado de reclusão. Mas me dá água na boca aquele cheiro. Meu pai, minha mãe e meu irmão grande trazem para mim o que eu posso comer: frutas, peixes e alguns tipos de caça. Mas não sei se é rebeldia minha, ou não, mas o que eu quero comer é sempre o que eu não posso. É claro, no entanto, que eu jamais sairia da minha dieta. Todos já me ensinaram dos perigos de não seguir as regras do tempo de reclusão.

O nosso clã é agricultor. Plantam muito e uma grande variedade de produtos, como milho, mandioca, feijão de corda, abóbora, banana, batata, mamão. Plantam ainda o urucum, para a pintura corporal e da roupa, e o fumo. Existe um ritual a ser seguido para se fazer uma nova roça. Meu irmão maior participou do último antes dele se ausentar, com os adultos, em direção aos lugares mais remotos do nosso território. Isso foi há umas duas luas, talvez.

— Nós, os que estamos sendo iniciados, fomos junto com os homens adultos para o local escolhido para ser a nossa futura roça. – Ele me disse – E então, em meio à mata, os homens entoaram o canto ritual. E depois de um bom tempo de reza, os Járy confirmaram a aprovação do local.

— É preciso respeito e reconhecimento de que tudo tem um Dono. – Insistiu meu pai.

— Após a confirmação do local, eles fizeram uma derrubada inicial. – Continuou meu irmão – Então o Pa'i, sempre entoando um canto ritual e quase em transe, foi andando em meios às arvores até chegar a um local, que ele disse ser o local escolhido. Ali, cruzaram dois paus, pois aquele era o local determinado para ser o centro da futura roça. Em seguida, proferiram, novamente, uma outra reza: a reza de controle do fogo que seria ateado para a queima inicial.

— Esta segunda reza tem o local exato a ser feita. Isso para controlar o fogo. – Interrompeu meu pai – E é assim, seguindo a geometria dos paus cruzados, nos quatros cantos, rezaram. Dali o fogo não passa. Ali é o limite dado a ele, o fogo, pelo Dono do Fogo. Tem-se sempre que apaziguar e conseguir a aprovação do Dono do Fogo para se lidar queimadas, afinal a terra já foi destruída uma vez pelo fogo. Um incêndio colossal, ocorrido no tempo dos começos. E só então se ateia o fogo para a limpeza e purificação do solo.

— Filha, está aqui. – Sou interrompida de meus pensamentos por minha mãe, me oferecendo o que será o meu alimento nesse momento. – Agora vou para a roça.

Observo ela pegar seus apetrechos. Ela sempre vai à roça de manhã, para cuidar e pegar mantimentos. Antes, eu ia com ela, a acompanhava. Mas agora não posso, por causa de meu estado de reclusão.

Minha mãe sai para nossa roça pela porta lateral. Talvez trará coisas como mandioca, batata ou milho. Alguns produtos de nossas plantações não são estocados na casa grande, ficam nas roças e têm de ser buscados diariamente. O milho, por exemplo, quando seca, as espigas são quebradas, mas permanecem no pé, penduradas. As abóboras morangas, quando maduras, são colhidas e colocadas, ainda que na roça, em um espaço preparado para serem armazenadas, uma tapera coberta por sapé. Nas roças sempre se produz também melancia, abacaxis, e outras frutas.

Eu gosto muito de ir nas coletas de frutas do campo. Tem guavira, pitanga, yvá hũ (jabuticaba silvestre), jaracatiá, caju e tantas outras frutas! A época dessas frutas é uma alegria para as crianças. Às vezes, chegamos a armar acampamento nesses locais, ficando lá vários dias. Enquanto dura a estação da fruta.

— Se não houver nenhuma desordem no campo espiritual, sempre temos fartura. – É o que sempre repete o Pa'i – A caça e pesca é abundante, a coleta também.

O som do vento faz um barulho aterrador nas árvores. E pior ainda é o frio que entra pelas frestas das paredes de sapé: um vento gelado, que queima o braço, o rosto, a pele toda. Caiu muita geada à noite e o sol tem dificuldade de aparecer.

Estão todos perto de fogos, cada um tentando se aquecer como pode. Ainda que cada um esteja empenhado em alguma função, todos estão sempre o mais próximo possível ao fogo de sua família: as mulheres cuidam em cozinhar ou tecer; os homens fazem flechas, arcos ou apontam as ferramentas de plantio.

Meu irmão mais velho está lá fora, por aí. Já há algum tempo ele acompanha meu pai e os outros homens adultos da nossa família grande durante suas saídas e reuniões. Sei que ele está sendo preparado para a idade adulta tanto quanto eu. Só que a preparação é diferente, muito diferente. As funções que cada um exercerá dentro da nossa família grande, ou mesmo dentro do nosso clã, são específicas ao homem ou mulher. E ainda existem outras coisas. Não sei de muito ainda, mas sei que vai depender também do que nos será dado pelos Járy, os Donos de cada um. Ainda não recebemos nenhuma reza. E a reza define um pouco as nossas futuras atribuições, competências e definição de campo de ação. Também ele ainda não passou pelo ritual do tembetá, que é o ápice da iniciação dos meninos, quando eles têm o lábio inferior furado e um objeto, feito de resina de árvore, é inserido no orifício.

Lá fora está muito frio, muito frio mesmo. Eu sei que não posso sair. Podem me acontecer tantas coisas ruins, se eu sair! E todos cuidarão para que isso não aconteça. 

(Curta na estrelinha, comente. Esses detalhes fazem a alegria do escritor.)

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Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora