28b. Enfrentando o caminho (Avá Verá)

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Aperto os olhos. Eles ardem, doem. As lágrimas amargas e silenciosas chegam aos meus lábios e o gosto de sal à minha boca. Respiro fundo, me endireito. Somente a culpa e o arrependimento me movem agora. Continuo andando volteando a clareira, procurando uma posição em que fique mais perto do grupo. E é nesse momento que algo me chama atenção. Um pouco mais à frente, percebo, recostado a pedras, algumas armas do grupo. E dentre elas, uma aljava de zarabatana e pequenas flechas. Xe Járy, obrigado! Se elas estiverem com veneno, como desconfio, e eu conseguir pegá-las, tenho uma chance! Usar zarabatanas foi umas das primeiras coisas que aprendi quando comecei a ser preparado para me tornar um membro adulto do clã, quando começou a minha iniciação. E, modéstia à parte, acho que sou muito bom no uso delas. Se eu conseguir pegá-las, ainda que não estejam envenenadas, zarabatanas são mais silenciosas. Ainda mais do que flechas.

Flechas envenenadas de zarabatanas agem rapidamente paralisando a vítima e quase não deixam rastros. Demora um pouco para quem está perto ver que a pessoa foi atingida. No entanto, a parte ruim é que tenho que me aproximar mais para conseguir pegar a arma dos homens do clã inimigo. Terei de ficar perigosamente próximo. Mas tenho que tentar. Sinto bastante agora ainda não ter aprendido a magia das jurutatás. Porque se eu soubesse usar essa magia, como meu pai, facilmente eu venceria essa.

Olho firmemente para o grupo, mas não consigo fixar a visão, porque eles estão tomando sangue, sangue de minha mãe. Acho que isso os deixa em um frenesi, porque eles parecem não dar conta das coisas em volta. Tiro os olhos e os fixo na arma. Volto a tremer muito. Mas tenho de continuar. Tenho de conseguir.

Silenciosamente me abaixo e vou quase deslizando atrás das árvores. Estou perto. Só mais um pouco. Quando estou quase alcançando o local, eu dou um salto para trás me afastando. As crianças estão ali. Nossa! Elas parecem embriagadas. Ou drogadas. Malditos! Será que eles dão sangue humano para crianças tomarem? Mas tenho a resposta imediatamente. E é negativa. Eles estão embriagados sim, mas é de xixa fermentada, porque há uma vasilha na mão de um deles e, ao lado, um coxo pequeno com xixa. O Cheiro forte de álcool chega ao meu nariz. As crianças estão completamente embriagadas e quase inconscientes. Mas ainda assim, estão recostadas ao local onde está a zarabatana. Não posso confiar nelas, não quando elas já estão iniciadas nesses rituais e agora bastante embriagadas, caso contrário, lhes pediriam ajuda com a arma.

Fico pensando no que fazer. E se eu matasse as crianças primeiro? Não, não posso. São apenas crianças. Pondero sobre a situação olhando firme para os dois meninos. Eles não estão acordados, eu acho. Estão recostados e com olhos fechados. Vou rápido e silenciosamente até o local. Sempre com os olhos nas crianças e na turba aparentemente tomada por espíritos malignos, pego a aljava da zarabatana. As crianças não dão conta do que fiz, estão dormindo. Apagadas pela xixa que tomaram. Agora sim, estou armado. Agora sim, tenho mais chance.

Me esgueirando, afasto-me para a mata, me ocultando. Debaixo de árvores e sendo encoberto pela vegetação rasteira, verifico o que peguei. São somente quatro flechas na aljava. Não é muito. Retiro uma delas. Está com a ponta protegida, está envenenada. Retiro as outras três, todas envenenadas. Vou começar com essas, e que seja o que Xe Járy quiser. Não tenho outra opção. Se isso é tudo que tenho, será usando isso que vou tentar.

Vou me esgueirando silenciosamente. Preciso encontrar a melhor posição, a melhor visão. De repente, me vejo em um local em que todos os homens estão bem à vista, sem nenhum obstáculo à frente. Os homens estão em um movimento frenético, como uma dança, como uma posse. São em número de três mãos, mais ou menos. Tenho que conseguir o melhor momento. Não posso errar.

Pego a primeira flecha envenenada, coloco na zarabatana, me posiciono. A zarabatana é muito grande, quase do meu tamanho. Mas é fina e bem leve. Quando sinto que tenho estou na melhor posição possível, tiro a proteção do veneno na flecha. Coloco a zarabatana em meus lábios, miro em um deles. O homem está tomado, dança de forma insana. De sua boca, escorre restos de sangue, nas mãos, pedaços ensanguentados de órgãos humanos, o corpo, uma mistura de cores de tintura, terra e sangue. Meu coração está acelerado. Inspiro profundamente e sopro com toda força possível. O homem cai. Ainda estremece por uns segundos. Depois fica totalmente inerte. De suas mãos, o que ele comia cai ao chão. Menos um. Este está morto.

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora