31. Um confronto de seres imortais (Avá Verá)

355 56 9
                                    

Saio em direção à floresta. O ar frio e úmido emanado da sombra das árvores nos recebe. Caminho o mais rápido que consigo por entre o emaranhado de árvores, folhas, cipós. Já não era muito fácil carregar o meu irmãozinho, mas carregar xe rendy é ainda mais difícil. Mesmo que ela esteja imóvel, ou talvez por isso. Mas continuo. Sei onde quero ir, onde quero chegar e não vou parar enquanto eu não conseguir isso.

Vou tentando me desvencilhar do que me aparece pela frente da melhor forma possível. Tenho pressa. De repente, percebo um barulho que destoa dos meus movimentos, dos sons normais ao local. Dou uma olhada rápida em volta. Não vejo nada e então continuo. Novamente pareço escutar alguma coisa, percebo que tem algo se movendo em nossa volta. Meus pelos ficam eriçados de susto e medo. Então, do nada, por entre as sombras e reentrâncias do sol, algo, ou alguém, começa a se materializar em nossa frente, nos olhando: um rapaz maravilhosamente adornado. Sua aparência e enfeites demonstram características além da humanidade: provavelmente um ser mágico, um Dono de animais ou de lugares. Num instante, estávamos sós, e no outro...

Paro assustado, pois nunca o vi antes. Detenho-me completamente paralisado, meu coração acelera. O que é isso agora, de novo? O ser tem a aparência de um rapaz, pouco mais alto e mais velho que eu. Seu rosto destaca-se por seus traços fortes, lábios grossos, queixo quadrado, testa larga e sobrancelhas inquisidoras que se fundem à pintura do rosto. Alto, forte, olhos vibrantes e alertas, o ser tem a pele morena, queimada pelo sol e em um tom uniforme. Por um instante, seus cabelos negros e lisos esvoaçam ao vento provocado por sua materialização.

O rapaz usa ornamentos que têm um brilho seco, forte, mas que são incrivelmente lindos. Mesmo que semelhantes aos nossos e feitos, aparentemente, com os mesmos materiais, têm características específicas, que os tornam diferente de tudo que já vi nos nossos enfeites. São excepcionais! Seu jegwaká é imponente, com enfeites de penas e penugens, ao que parecem, de papagaio ou arara, lindas com um brilho intenso e marcante em tons azuis, vermelhos, amarelos e brancos. Colares multicoloridos cruzam em seu peito. Seu corpo e membros tatuados com uma sequência perfeita de traços e motivos triangulares, linhas retas e círculos, numa consonância perfeita. Arte, mesmo que desconhecida e estranha, muito bem distribuída em uma harmonia inigualável.

Mitã'ĩ, que vinha logo atrás, de olhos baixos, cuidando onde pisar, não percebe que parei e esbarra em minhas pernas. Seu olhar segue do chão para minhas pernas, depois para meu corpo e meus olhos. Então se vira para a direção que estou olhando, o local para o qual estou com olhos fixos. Ele olha, inicialmente, surpreso. Depois repara mais atentamente. Então percebo que algo muda em sua feição. O seu rosto, que demonstrava susto, altera para curiosidade e depois alívio. Então vejo que ele sorri fracamente para o rapaz que está ali, à nossa frente. O rapaz corresponde. Como assim? Eles se conhecem?

— Quem é você ...? Como chegou aqui? – pergunto ao rapaz, mas ele não me responde.

Percebo que seus olhos, que têm a cor clara, quase a cor da mata, estão diferentes, parados e fixos. Sigo seu olhar e noto que agora ele olha consternado para minha irmã, que carrego em meus braços. Se aproxima alguns passos, faz menção de tocá-la. Dou passos para trás, me afastando e evitando o toque dele. Somente agora ele me olha, e é como se me visse pela primeira vez. Distingo em seus olhos uma tristeza indefinível, quase eterna.

— Sou o Senhor das Larvas – ele fala em um som intenso, mas não ameaçador. – Sou amigo de sua irmã. E pode me considerar seu também. Não se preocupe, estou aqui para ajudar vocês

O susto que levo quando ele se identifica como Senhor das Larvas fica estampado em meu rosto e gestos. Me afasto rápido, tropeçando em mitã'ĩ e em raízes que estão atrás de mim, quase caindo. Em um movimento rápido e ágil, o ser já está ao meu lado, me firmando para que eu não caia ou, talvez, para que eu não deixe minha irmã cair. Por um instante, paraliso, olhando suas pinturas coloridas, e sinto medo. Depois de tudo pelo que passamos, não confio nele, não tenho mais condições de confiar em seres que nos surgem do nada e, principalmente, nesse Ser.

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora