24b. O caminho das flores (Avá Verá)

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O sol está para se pôr. O som de pássaros recolhendo-se às árvores anuncia que a noite está chegando. Os insetos noturnos começam a ser ouvidos. Andamos bastando à tarde, mas não rendemos o quanto queríamos. Isso porque, em quase todo o tempo, o meu irmãozinho teve de ser carregado. Intercalamos nessa tarefa, minha irmã e eu. Mas ainda tinha todas as outras coisas das quais fazemos uso e que também estamos levando. Então o trabalho se tornou muito cansativo e tivemos que parar e descansar em alguns momentos.

— Precisamos arrumar um lugar para passar a noite. – Digo, me aproximando de uma árvore onde deposito as coisas que tenho nas mãos. O local está coberto de flores.

Minha irmã coloca Mitã'ĩ no chão. Ela parece muito cansada, mas em nenhum momento reclamou de levar o menino, pelo contrário, cuidou dele, brincou com ele, o distraiu. Xe sy, no entanto, continua quieta, quase não fala. Parece emburrada.

Estou feliz de que não tenha chovido e de que o céu não esteja indicando que vá chover. Se isso acontecesse, seria muito difícil.

Todos sabemos o que fazer e cada um faz o que está ao seu alcance. Apanho galhos secos preparo uma fogueira, minha irmã limpa um pássaro que matei com flechas à tarde. Minha mãe pega algumas das batatas que trouxemos e coloca para assar. Depois limpa um local onde ela arruma as coisas para a gente dormir. Meu irmãozinho brinca com flechas.

Assim que está tudo pronto, comemos e decidimos que é hora de dormir.

— Eu fico vigiando a primeira parte da noite – digo para minha irmã.

— Tá bom, depois você me acorda, e eu vigio na segunda parte.

Digo que sim e subo em uma árvore, me colocando em um ponto que me dá uma boa visão. Minha mãe, irmã e irmãos se ajeitam para dormir. De onde estou, dá para ver toda a extensão, mas com a escuridão da noite, só é visível até onde a fogueira ilumina. Aparentemente está tudo calmo e a noite será tranquila. Os sons da floresta estão normais: animais, insetos e aves noturnas. O aroma gostoso da floresta florida toma conta de tudo, conforme a escuridão vai dominando tudo. Estou feliz que tudo tenha dado certo até aqui.

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Este já é o terceiro dia desde que saímos da caverna de Pa'i Sumé. Por três vezes tive que executar o canto ritual pedindo a direção do Nosso Dono, e nas três vezes Ele me orientou e consegui decifrar o caminho das árvores floridas e os sinais deixados pelo meu pai. Na verdade, não é bem um caminho, são pequenos sinais. E seguir sinais dentro da mata exigem muita atenção e cuidado. É preciso olhar folhas e galhos, solo e detalhes mínimos como uma folha amassada, folhas do solo removidas, pequenos galhos quebrados.

Acho que aprendi algumas coisas nesses dias, no sentido de sobrevivência na mata sem meu pai e guiando um grupo, que é a minha família. E, principalmente, descobri que Nhande Járy, o Nosso Dono, do qual Pa'i Sumé falou, tem poder sobre toda a criação, sobre toda a floresta e que está ao nosso lado. Ele faz a floresta se renovar à sua passagem, faz as árvores e plantas rasteiras se abrirem em flores, cria caminhos e passagens em meio à floresta virgem e inexplorada. Estou começando a entender o que o Pa'i nos disse sobre Nhande Ryke'y Tee Va'e, de que Ele se manifestará aos seus escolhidos. Acho que Ele tem se manifestado para mim.

Mas agora chegamos de novo a uma bifurcação do caminho que seguimos na mata e me encontro, novamente, em dúvida. "Siga o caminho das flores, você saberá identificar os sinais e indícios deixados por seu pai". Essas palavras me guiaram até agora. Mas aqui, está difícil.

— Eu não sei. – Digo, já desanimado. – Não encontro sinais.

— Vamos pedir orientação de Nhande Járy de novo. – Diz minha irmã.

— É o que vamos ter que fazer. – Digo, já procurando os ornamentos e os jegwakás, meu e de meu irmãozinho.

— De novo isso? – minha mãe se mostra mais impaciente que nunca. – Eu não aguento mais. Se seu pai está te guiando, por que não deixa os sinais de forma clara? E de uma vez? Já me cansei de termos que parar toda hora.

Olhamos todos assustados para ela. O que será que está acontecendo? Nem parece ser minha mãe. Ela não era assim? Será que ela está tomada por algum mal? Estou ficando preocupado com ela. Minha irmã também já percebeu que mamãe não está bem. Pelo menos, não está normal como ela é.

Realizamos o canto reza de adoração e de pedido de orientação. E como magia, mais uma vez, a floresta se ilumina para mim. As flores, o verde das árvores e plantas, até o musgo e ervas rasteiras demonstram uma vivacidade, um verdor. Então percebo um outro sinal claro de meu pai. Pena de Tucano de seus enfeites me indicam o caminho. Recolho a pena e digo:

— Já sei por onde temos de ir.

— Espero que você esteja certo. – Diz minha mãe, bastante aborrecida. – Eu não aguento mais andar nessa mata. Queria estar de volta na casa minha família, dormir em uma rede debaixo de um teto e paredes de sapé, cercada de pessoas queridas e acolhedoras.

A partir desse momento e desta fala de minha mãe, sou tomado por uma raiva interior que me invade e vai se apossando de mim. Sou tomado de raiva e ressentimento e me deixo dominar por eles. Um sentimento estranho toma conta de mim e, de repente, não quero mais que minha mãe continue com a gente. Estou com raiva dela. Ela me chateou mesmo! Então, como que dominado, mudo de ideia e falo:

— A direção que papai está indicando é esta. – E aponto para a direção contrária à que sei ser a correta.

— Então vamos. – Diz xe sy. – Vamos embora logo, porque o quanto antes encontrarmos seu pai, mais rapidamente voltaremos.

Você não voltará!, um pensamento rápido passa por minha mente. E parece-me mais uma revelação do que um pensamento. Um arrepio perpassa todo o meu corpo... Tomo o caminho em que a floresta não tem o brilho e a vida do tempo da renovação. Guio os meus parentes pelo caminho errado. 

(Continua) 

1060 palavras 

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora