22b. Seres da selva virgem (kunhã Rendy)

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Ele inspira o ar profundamente. Está sentindo o nosso cheiro. Eu não tenho a mínima ideia do que é a coisa que está ali. Não consigo sequer manter o olhar em direção a ele. De seus caninos protuberantes, escuros de uma sujeira impregnada, escorre uma saliva de odor irrespirável. Se aproxima ainda mais de nós. Estamos paralisadas pelo medo.

— Duas meninas virgens! – continua com voz insinuante. – O que duas meninas virgens, que acabaram de sair de seu estado quente, estariam fazendo aqui?

Ele circula em volta de nós, como que tentando descobrir algo em nós. Ou, talvez, quem somos. Como um reconhecimento. Então se aproxima muito, cheirando profundamente cada uma.

— Será que é quem eu estou pensando que é? – e agora percebo uma satisfação indisfarçável nele. Com certeza, ele sabe quem somos.

Ele se vira para mim, me cheira. Inspira profundamente, como se gostasse muito do que sentiu. Raspa sua unha grande e imunda em meu ombro, descendo pelo braço, fazendo um pequeno risco, de onde gotinhas de sangue brotam. Me contorço de dor, sua unha queima como o fogo. Ele leva a unha molhada com meu sangue à boca. Lambe com prazer. Quando finalmente engole, ele fecha os olhos por um instante, degustando.

— Então é você. – Ele continua em uma voz que mais parece um grunhido. – Você é uma menina Ijukapyrã, aquela que deve ser morta!

Ele se volta para Porasy. Repete o mesmo ritual, cheirando-a, raspando-a e sentindo o gosto de seu sangue. Seus olhos, feição e até postura se demovem do contentamento para a exultação.

— E você também! – diz sobre Porasy – Outra menina Ijukapyrã! E eu que cheguei a pensar que hoje não era o meu dia, por ter perdido umas das crianças Ijukapyrã, que já estava em minhas mãos. – Por um instante, vejo um ódio intenso em seu olhar. Mas rapidamente volta à expressão de êxtase – Mas isso aqui está melhor que encomenda! Quem diria! O Sumé, o Grande Sumé, que foi enviado para proteger os escolhidos, os predestinados de Nhande Ryke'y Tee va'e. O grande conhecedor dos mistérios antigos, designado a encontrar os escolhidos e dizer a eles quem eles são de fato, e a quem pertencem, os traz exatamente para o território em que nenhum dos Donos que eles conhecem têm autoridade. Para o meu território!

Dizendo isso, ele dá uma risada aterrorizante e se volta para mim.

— Será que você é quem eu penso que é? – me cheira novamente – Esse cheiro... Sim, eu acho que você é Kunhã Rendy, sim. – E ele usa o meu nome, em um território desconhecido, desbravado, onde não tenho a proteção dos meus Donos. Ele conhece meu nome. Se o kwatiarã com meu nome não estiver em posse dele, ele teve acesso a essa informação através de alguém que pode estar em posse dele.

— Hahaha! Então você é a preferida do Avá Poty! Aquela que ele não conseguiu atrair para a morte. – Ao ouvir o nome do Adornado, minhas entranhas apertam, dão nó. Meus pelos arrepiam. Minha respiração parece não dar conta de me manter. – Mas eu já vou dar um jeito nisso! Vou resolver isso para ele! Estarei até ajudando ele, apesar de ele não merecer, é claro.

E como se estivesse falando para si mesmo, completa:

— Depois eu me acerto com ele. Posso até receber uma recompensa por isso. Quem sabe uma vida ainda mais longa! – dizendo isso, volta às risadas sinistras. – Hahaha. Me esqueci que já sou imortal. Ou quase!

Se voltando para nós completa:

— Que será de mim se eu tomar o sangue de meninas virgens Ijukapyrã, se já sou imortal? Será que me transformo em um deus?

E sua risada é interrompida por uma súbita reação de Porasy. Antes que eu percebesse de novo o que ela estava fazendo, ela já tinha tirado uma de sua cintura uma faca e partido para cima do ser híbrido, com a intenção de atingi-lo no coração. Mas a criatura é mais rápida e com um gesto, somente um gesto, joga ela em direção a uma árvore grossa atrás dela, com força descomunal. Seu corpo frágil atinge o tronco e chego a ouvir o barulho de ossos se quebrando. Ela cai no chão desmaiada. Ou morta, não sei. Sangue escorre por seu nariz e boca. Ele deve ter estourado seu interior.

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora