Capítulo I

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1815

A guerra havia acabado e todo o reino celebrava a vitória da soberania britânica frente a tirania francesa. Ninguém celebrava mais a vitória do que o velho almirante Charles Mackenzie, herói da batalha de Trafalgar, que, agora administrava seus longos termos de terra na querida Escócia. Mas não era apenas aquela vitória que o velho Mackenzie festejava. Sua única filha, Elizabeth, havia retornado para casa depois de ter sido enviada a Irlanda para cuidar da tia, a irmã do almirante, que esteve adoentada. Por isso, Kenbridge Hall se adornara naquela noite para uma festa nunca antes vista na propriedade.

"Uma bela propriedade, não acha, George?", comentou o capitão lord James Graham animadamente.

"Sem dúvida", resmungou seu companheiro sem expressar sentimento.

Naquele exato instante, os dois jovens marinheiros trajados com seus uniformes de gala entravam nos salões de Kenbridge onde já se ouvia a orquestra tocando um animado reel que fazia toda a gente dançar sob a luz bruxuleante de muitas velas. Hortênsias em tons azuis, campânulas brancas, prímulas amarelas traziam a primavera para o local. Os dois homens do mar viram salões cheios da mais animada parte da alta sociedade escocesa conversando e rindo como em Londres não se veria. E o bom povo das terras altas viu nos dois jovens belos exemplares de heróis da Marinha Real. Ambos tinham porte nobre e sinais das inclemências do tempo no mar. James era esguio com uma eterna expressão divertida no rosto de aspecto belo e cabelos loiros num tom escuro bem rebeldes como se o vento vivesse a brincar por entre aqueles fios. O uniforme azul escuro dava a ele ares mais dignos e ressaltava seus inquietos olhos castanhos. Seu companheiro George era o contraste. Lord Stanfied era mais alto que a maioria do homens, corpulento de músculos e carregava no rosto uma expressão sisuda e madura para seus 24 anos, impressão reforçada por uma robusta, mas bem aparada barba escura, muito pouco usual para a moda da época. Nele, as vestes de gala da Marinha reforçavam o ar de autoridade carregando de uma aura de ameaça sempre a pairar nos olhos azuis cristalinos.

"Sejam bem-vindos a Kenbridge Hall, meus valorosos senhores!", o almirante saudou os jovens com efusividade. "Sou o almirante Mackenzie", apresentou-se o roliço homem que tinha aspecto de um leão com cabelos revoltosos e costeletas altas.

"Almirante", cumprimentou a voz profunda de George após uma curta e marcial reverência, "Capitão lord George Stanfield, ao seu dispor", prosseguiu com o mesmo tom sério. "Este é meu bom amigo, capitão lord James Graham"

"Nós e nossos homens estamos honrados com o convite, senhor", lord Graham disse com um tom amistoso, "Deus sabe que os rapazes precisam de alguma dança para celebrar o fim desta guerra"

"A celebração faz parte do esforço de guerra, rapazes. É um bálsamo ao espírito", comentou o mais velho com voz potente como se palestrasse sobre o assunto. "Ainda mais quando a celebração é dupla"

"Ora, bom almirante, qual é o outro feliz motivo do baile?", inquiriu o capitão Graham.

"Vêem aquela pequena ruivinha saltitando no salão?", com o rosto rechonchudo, o homem apontou uma jovem com um pouco mais que 20 anos com os cabelos castanhos avermelhados presos num coque a moda da época e adornado por pequenas flores brancas. A moça, vestida com uma elegante musselina branca bordada, dançava e ria no meio do salão. "É a filha que qualquer homem pediu aos Céus. Acaba de voltar para casa depois de ficar nove meses cuidando de minha irmã na Irlanda", prosseguiu o homem.

O momento no qual George Stanfield colocara os olhos na figura mediana de Elizabeth Mackenzie fora único. Era um homem pragmático e desacreditava em sentimentalismos, achava que eram coisas de mulher, poetas e franceses. Todavia, ali observando o dançar gracioso da senhorita Mackenzie, a forma como seu rosto sorria por inteiro formando pequenas ruguinhas felizes no canto dos seus olhos e como estes mesmos, amendoados que eram, luziam; o jeito com que seus lábios rosados pareciam dançar um reel pelo seu rosto e a risada franca que dava, faziam com que George se sentisse como atingido em cheio com um raio no meio de uma tempestade. Não sabia o que fazia com que ele se sentisse mais comovido em relação aquela mulher: se a aparência de anjo travesso ou o jeito traquinas com que saltitava ritmicamente em volta de seu parceiro, mas o certo era que algo dizia a George que, depois de ver aquela mulher, sua vida nunca mais seria a mesma.

"Uma verdadeira beldade", sussurrou James cortando-lhe os pensamentos. "Vamos ter com ela", o amigo completou se afastando antes que George pudesse falar qualquer coisa, dando-se apenas trabalho de seguir o outro em silêncio, sentindo-se lerdo por não ter tomado a dianteira. Enquanto se aproximavam, George amaldiçoava todo o atrevimento escocês no qual James Graham fora banhado ao nascer, afinal ele a vira primeiro, pensou um tanto rabugento.

"Senhorita Mackenzie", James permitiu-se interpelar a jovem, assim que esta terminou de dançar. Naquele exato momento, outros marinheiros pareciam ter a mesma ideia e cercavam a filha do anfitrião como abelhas circundavam uma flor, o que aborreceu ainda mais George. "É bom tê-la embelezando nossa Escócia novamente".

"A quem devo a honra de agradecer o elogio e as boas vindas, senhor?", soou a voz melodiosa de Elizabeth tornando a sua atenção aos dois oficiais recém-chegados, que, segundo seu rápido julgamento, eram os dois mais belos do salão.

"Capitão lord James Graham, inteiramente a sua disposição", e com uma reverência elegante e nada militar, ele tomou a mão dela e a beijou, apertando levemente os dedos da mesma. "E meu silencioso amigo, capitão lord George Stanfield".

Elizabeth desviou o olhar de James para George e o olhar azul intenso do último fez a jovem enrubescer sem motivo aparente. Talvez fosse a aparência sisuda do outro ou então o fato de barba pouco revelar se estava sorrindo ou não. Sentiu que aquele olhar perscrutava, analisava em seu silêncio. George tomou a mão dela e a beijou com a educação que a ocasião exigia.

"Acho que papai já deu as boas vindas e já disse que qualquer defensor dos mares é amigo em Kenbridge", ela disse a ambos, mas seu olhar se detinha em George e seus cabelos castanhos escuros em semicírculos confusos que emolduravam um rosto de linhas e ângulos retos.

"Dance comigo, senhorita Mackenzie", de repente, a voz de George se fez ouvir grave e séria como sempre. Não foi um pedido comum, mas tão pouco foi uma ordem. Nem ele mesmo sabia como as palavras lhe saíram, mas sabia que se elas não saíssem, ele, decerto, se arrependeria.

Ela o avaliou com um semblante surpreso, apertou os olhos e, no fim, sorriu, e ele nunca se esqueceria disso como ela parecia uma rosa abrindo as pétalas numa manhã de sol. Estendeu-lhe a mão entregando-se como par de dança do capitão.

"É sempre assim tão sério, milorde?", inquiriu Elizabeth enquanto se encaminhava com George para o meio do salão.

"Apenas quando me sinto constrangido", ele respondeu com uma curva de lábios que ela julgou ser um sorriso.

"Rogo que me diga no que o constrangi, meu senhor", ela estava preocupada com aquela resposta quando deu os primeiros passos na dança. Enquanto revisava seu comportamento, ela observava os traços fortes do rosto do homem com quem dançava.

"Todo o seu ser me é constrangedor, senhorita....", confessou o homem quase num sussurro rouco.

"Suponho que tenha sido um elogio", alfinetou Elizabeth bem humorada.

"O melhor que tinha na manga", resmungou George desarmando-se da sua sisudez ao permitir um brilho travesso lhe passar pelo olhar.

"De longe, o mais decente da noite", e ela riu. Para George, aquela risada era muito mais agradável de ouvir do que cem violinos chorando as peças de Bach.

"Sejamos discretos, minha cara. Ou os outros saberão de minha superioridade em relação a isso", ele prosseguiu com certo humor.

"Certamente, capitão. Não queremos diminuir o moral dos homens", Elizabeth imitou uma voz masculina que provocou um riso sincero de George.

"O almirante sabe que criou uma pequena marinheira?", provocou George ao terminarem a dança.

"Deus, não! Caso contrário, me arranjaria uma corveta para comandar...", comentou com um falso ar de lamento enquanto retornavam ao grupo, presenteando o parceiro com uma piscadela marota.

Por toda a noite, George lançou olhar cúmplices a Elizabeth, que ria ao lembrar das maneiras divertidas escondidas debaixo daquela aparência autoritária. Ainda dançaram por mais uma vez antes de se despedirem com a promessa dos dois capitães que voltariam para caçar com o almirante.   




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