01. O início

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Deixe-me dizer adeus aos meus demônios
Deixe-me dizer adeus à minha antiga vida
— Linkin Park

***

Na época, eu, uma garota de dez anos, brincava descontraída em frente à garagem de casa quando aquele carro passou voando por cima de mim. E me lembro de que nada fazia sentido na saída do hospital.

Passados seis anos, o drama continua a me atormentar dia e noite.

Papai e mamãe até que foram legais comigo, apesar de nunca terem sido o exemplo perfeito. Esforçavam-se ao máximo para fazer da minha nova vida um conto de fadas. Meu irmão mais novo tentava me alegrar todos os dias depois que chegava do jardim de infância. Mesmo sendo um desastre total na cozinha, eu fingia que gostava e cheguei a devorar uma travessa inteira de seus cookies de manteiga de amendoim com chocolate. Éramos bons amigos.

Pode não parecer, mas ainda sinto as sequelas daquele acidente. Os dias da independência seguintes foram uma merda: vi meus colegas brincando, correndo pelos jardins com seus cães e pais enquanto pegavam bambolês para fazerem bolhas gigantes; dúzias das mais variadas carnes e molhos eram colocadas nas churrasqueiras e os jatos d'água se tornavam surreais em contato ao sol poente.

E eu estava em uma maca tomando soro direto na veia, medicada restritamente dia após dia e bebendo diversos tipos de sopa, sem nunca poder pensar na hipótese de comer hambúrguer ao molho curry com fritas novamente. É, a morte age de maneiras estranhas enquanto ainda estamos vivos.

Não sei como contraí tudo isso, mas parecia que meu corpo já andava tendo recaídas desde a época em que descobri a alergia aos doces. Também devo lembrar da doença estranha que me atingiu da vez em que fui visitar minha avó, que morava perto do campo. Alguma praga invadiu meu sistema imunológico e por pouco não saí lacrada em um caixão.

Cinco anos depois do trauma, me curei quase totalmente, apenas tirando o problema permanente com o açúcar. Sozinha na cama, eu comia tacos de cheddar quando ouvi um estranho som vindo das escadas.

O quarto do meu irmãozinho ficava logo ao lado. Andei devagar, não o encontrei em lugar algum. Mesmo que sentisse algo estranho tomando conta de mim, ignorei aquele sentimento e segui pelo corredor.

Risadinhas. Escutei meu nome sendo dizimado cada vez mais pelos próprios membros de minha família.

Meu pai era jardineiro. Sua tesoura de trabalho estava escondida na cômoda lateral, como de costume. Sobre ela, uma belíssima foto de nossa família estava pendurada na parede, em que o grande sorriso de minha mãe iluminava o parque nacional enquanto papai me levava nas costas. Meu irmão, ainda bebê, sorria na direção da câmera.

"Tome cuidado com essa arma, minha menina, nunca a tome em suas mãos", dizia.

Ignorei o grande sorriso de mamãe. Meu pai havia desaparecido e os doces olhos do garotinho não me impressionavam mais.

Acho que podíamos abrir uma exceção para esta noite.

Chelsea

Hell GirlOnde as histórias ganham vida. Descobre agora