23a. Sobre profecias e sortilégios (Kunhã Rendy)

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Um forte vento invade a caverna num grande estrondo. Varrendo tudo, atinge também a mim, quase que me arrancando os cabelos e o restos dos panos que ainda me cobrem. Um grito horrível se faz ouvir. Imagino o coração de Porasy sendo transpassado, depois arrancado ainda pulsando, espetado na faca do bruxo. Estremeço, aperto ainda mais meus olhos e choro. Escuto sons, coisas se movimentando. Ouço o que imagino ser o barulho de um corpo batendo contra a parede. Há um instante de quietude, um quase silêncio. Coisas que foram içadas pelo vento parecem estar caindo de novo no solo. Escuto um outro som. Agora é como se um corpo estivesse sendo arrastado. Sinto que foi depositado perto de mim, aos meus pés.

Estou muito assustada. Meu coração quer sair pela boca, meu corpo treme. O que será que está aos meus pés, o monstro ou os restos mortais de Porasy? Imagino o monstro sobre ela, sorvendo o seu sangue. Sei que serei a próxima. Estou apavorada. Não consigo ter coragem de abrir os olhos. Eles estão como que pregados.

Novamente escuto e sinto o vento. Agora me atinge em cheio. Um calor de magia me envolve, sinto que estou livre, meu corpo escorrega ao chão, ao lado do que está perto de mim. Sei que tenho que abrir os olhos, mas estou em pânico. Imagino o monstro vindo sobre mim. Seu corpo imundo em mim. Suas garras me apertando, seus dentes com aquela gosma me mordendo, arrancando os meus pedaços.

Em minha mente, pulsam as palavras e ameaças feitas a mim, na mata: "Você... Você eu devorarei viva, enquanto te possuo. Arrancando pedaço por pedaço, sorvendo o seu sangue, sentindo o seu coração pulsar acelerado!". Sei que preciso abrir os olhos, tentar fazer alguma coisa, tentar fugir dali. Mas não consigo ter forças, não consigo, sequer, me movimentar.

— Menina, você está bem?

Ouço uma voz que não é a do monstro.

— Consegue me ouvir? Consegue se movimentar? – parece a voz de Pa'i Sumé.

— Deixe que eu cuido delas.

E a voz que ouço agora me é conhecida. É doce, quente e suave ao mesmo tempo. Carinhosa. Eu sei de quem é. É a voz dele! De Avá Poty, o Adornado! Imediatamente abro os olhos, e ali está ele, perto de mim. Seus olhos profundos me encaram. E me encantam. Sinto o seu perfume, o cheiro que emana de seu corpo suado. Seu perfume é o da floresta, de árvores em flor, de néctar de troncos e raízes perfumosos. Ele é a presença viva da floresta em todo seu verdor, em todo seu poder de envolver, tomar posse, seduzir. Seus enfeites e tinturas corporais, ainda que estraçalhados e apagados como quem acabou de passar por uma luta, o deixam lindo. Ele sorri para mim. Meu coração se dissolve, perco o controle da minha respiração.

— Você está bem? – ele me pergunta me acordando de meu transe.

— Sim, estou bem. – Respondo com dificuldade.

— Olha, vou levar a outra menina lá fora e já venho te pegar. Tudo bem?

Só então me dou conta de que é Porasy que está caída ao meu lado. Tem arranhões e corte por todo o corpo, que está todo tomado de sangue, em várias partes. Está desmaiada e, ainda que com dificuldade, está respirando. Elevo um agradecimento a Xe Járy, ela está viva. E não está estraçalhada como imaginei. Como pensei que estivesse.

— Sim. Tudo bem. – Respondo.

Adornado a toma nos braços, a ergue com tranquilidade e, velozmente, sai pela porta da caverna. Só então consigo ter coragem de visualizar o que acontece ao redor. E me surpreendo com o que vejo:

À minha frente, do outro lado da caverna, está Pa'i Sumé. Suas roupas longas, rentes ao chão, em tons que vão do amarelo ao alaranjado, como as cores do girassol, voam ao vento e poder emanados do seu cajado. Uma claridade mágica inunda toda a caverna. Seus cabelos e barbas longos e brancos esvoaçam ao vento. Em sua mão direita, estendida à sua frente, ele mantém firme seu cajado em forma de paus cruzados. O poder que emana do cajado também mantém o monstro-bruxo preso à parede. A aparência de Sumé é imponente como nunca vi antes. Seus olhos poderosos. De sua boca, saem imprecações contra o bruxo humano animal, que está imobilizado. São ordens poderosas, das quais não se pode recuar. Sons estrondosos e luzes, como de trovões e raios, procedem do cajado em direção ao bruxo, dissolvendo-o. Pouco a pouco, pedaço por pedaço.

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Onde as histórias ganham vida. Descobre agora