22a. Sobre seres e magia (Kunhã Rendy)

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Tudo é tão diferente quando não se está em seu território. Quando morávamos na casa grande de Nhane Ramõi, eu conhecia cada espaço, cada árvore, cada trilha. Sabia sempre o que encontrar à frente após cada curva, ou além do rio. Tinha segurança de onde podia me jogar no rio, córregos ou igarapés. Sabia onde dava pé e onde já era fundo demais, ou se a correnteza era forte ou fraca. Conhecia os barrancos, os lugares onde galhos pendiam sobre rios e que gostávamos de brincar de heróis da floresta ou de donos dos rios. Não tínhamos medo porque sabíamos quem eram os Donos de cada lugar, de cada animal. E os nossos adultos conheciam as rezas a serem entoadas, sabíamos como nos pintar, como usar a taquara e o maracá. 

Dentro da casa grande, tudo também era conhecido, sabíamos onde era o espaço de cada família nuclear, onde ficava cada um dos fogos domésticos, onde cada rede era estendida. Sabíamos onde cada uma das três portas ia dar e o que tinha depois. Ainda que fosse noite e estivesse escuro, sabíamos, dentro da casa grande, onde ficava o altar de Xiru e, lá fora, onde era a marcação do sol nascente. Lá tínhamos a proteção das rezas, dos amuletos, das danças, pinturas e enfeites. Respeitávamos os deuses e eles nos respeitavam, nos guardavam e nos protegiam. Se errávamos, sabíamos a dança ritual para apaziguar e obter a graça deles de novo. E eles nos presenteavam com rezas.

Agora não. Agora tudo é diferente. Tudo é estranho. A caverna de Pa'i Sumé, ainda que ampla e cheia de divisões espaçosas, é abafada, quente, sem ar fresco. Não sei onde termina o nosso espaço e onde começa o do outro. Fora da caverna, não conheço os Donos dos lugares, não sei onde cada trilha vai dar e nem sei o que tem depois. Não existe uma nascente para cada um dos grupos que está ali. Temos que cruzar com outros em "nossos caminhos". Não temos privacidade. Sinto falta da nossa casa grande, da nossa comida, das nossas músicas, danças e rezas. Como sinto falta do som harmonioso do bater dos pés ao ritmo das taquaras e baracás que ouvia todos os dias de manhã e à tarde! Queria meu pai aqui, queria que meu irmão estivesse bem e agora, especificamente, preciso encontrar meu irmãozinho, xe kyvy'i.

Estamos procurando por ele há algum tempo. Porasy e eu saímos juntas da caverna e viemos nessa direção. Outros foram por outros lados. Selva virgem, que nunca foi explorada. Onde seres humanos não habitam e por onde não transitam, senão pelos rios. Lugares onde os Donos não são conhecidos e não foram ainda apaziguados. Somos estranhos a eles e eles a nós.

Aqui é assim, e eu sei dos tantos perigos de andarmos por lugares ermos como estes. Pa'i Sumé e xe sy não permitem nunca que alguém saia sozinho. Mas hoje Mitã'ĩ saiu. E, ao que parece, se afastou bastante. Porasy e eu já percebemos vários sinais dele: folhas arrancadas, pequenos galhos quebrados. Também achamos algumas de suas bolitas de barro que ele usa na funda. Mas isso foi bem perto da caverna. Agora já nos afastamos muito de lá. Estou com fome. Achei que o encontraríamos logo e não comemos nada. Espero que os outros grupos tenham mais sorte que nós.

A floresta aqui está mais silenciosa do que é normal. Geralmente os sons produzidos pela tanta vida da floresta é atordoante. Mas hoje, agora, está muito modesto, e eu não gosto disso. Micos nos observam e, quando passamos, mudam de galhos. De vez em quando, é possível perceber pássaros. Mas, no mais, a floresta está silenciosa.

— Olha, Kunhã Piru! – Porasy me mostra algo no solo junto a uma folhagem, quase ocultado por ela.

Firmo os olhos tentando visualizar o que ela me mostra.

— O que é? – pergunto quando, finalmente percebo para o que ela está me mostrando. Tem algo caído ali.

Nos aproximamos e minhas entranhas apertam quando tenho condições de perceber exatamente o que é:

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Where stories live. Discover now