17a. Entre dois amores (kunhã Rendy)

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Já passou do meio dia há muito e nada de meu pai, ou meu irmão. Nenhum dos dois voltou, nenhum apareceu. Apesar de estarmos bem, estou com medo de eles não chegarem e termos que passar mais uma noite aqui sem eles por perto.

Hoje, o nosso dia começou com o incidente no rio, quando vi as duas canoas se aproximando e imaginei logo que seriam pessoas da casa grande de Namói, pai de meu pai. Engraçado como eu já não me considero mais pertencente àquela família extensa. E também não pertenço a nenhuma outra. Somos hoje, mamãe e eu, pessoas sem raízes. Não estamos ligadas a nenhuma família extensa ou em alguma casa grande. E isso para o nosso clã soa como uma maldição.

Hoje de manhã, quando vi as canoas se aproximando, meu primeiro pensamento foi ir para o acampamento avisar minha mãe e fugirmos. Mas, imediatamente depois, pensei que xe sy não conseguiria fugir por causa do ferimento e por estar fraca. E não conseguiríamos ser mais rápidos do que eles. Então decidi fazer diferente. Apaguei rapidamente todos os sinais perto do rio de que estivéssemos acampados por ali. A canoa já estava retirada do rio e escondida. Meu pai e meu irmão já tinham feito isso. Então silenciosamente subi em uma árvore e me posicionei em um galho. Eu tinha arco e flechas. Não sou tão boa nisso como meu pai e meu irmão maior, mas pensei que poderia me defender e defender à minha mãe e irmãozinho, caso fosse necessário.

De onde eu me encontrava, dava para ver o rio, mas demorou um pouco para que as canoas entrassem em meu campo de visão. Quando as vi, percebi que eram quatro pessoas, duas em cada canoa. Reconheci dois tios e dois primos. Estavam com arco e flecha, mas eu não sabia se era realmente a nós que procuravam, ou se estavam tentando caçar. Fiquei com medo e assustada.

Quando as canoas se aproximaram, escutei um leve barulho. Um barulho de folhas secas se quebrando, como se alguém ou algo estivesse por ali, andando embaixo de mim, no solo. Então eu vi. Abaixada atrás de matos e camuflada entre as folhas e galhos tinha uma onça. A onça também parecia olhar para as canoas. Eu não tive dúvida de que era Avá Poty, o Adornado, na forma de onça. Fiquei muito feliz e aliviada quando me dei conta disso. Então o Adornado estava por perto. E, de repente eu não tinha mais medo. Ele estava imóvel e atento.

Mas parece que os da casa grande não estavam procurando pela gente, afinal. Ou simplesmente não viram nenhum sinal de que estávamos ali, porque passaram direto e continuaram. Quando eles se afastaram, desci da árvore silenciosamente. Adornado se aproximou em sua forma animal. E eu percebi que não tinha mais medo dele nessa forma. Toquei-o com minha mão, fazendo um carinho em seu pelo. Ele respondeu deslizando seu corpo em minha perna. Esperei que ele assumisse a forma humana, mas ele não o fez. Fiquei sem entender o porquê.

Ele passou sua cabeça por minha perna, num último carinho, e saiu sumindo na mata. Fiquei triste por um instante. Queria que ele continuasse comigo, mas entendi que ele não poderia estar comigo quando eu fosse para o acampamento. Minha mãe não pode saber que eu ainda o vejo e que ele está por perto.

Depois desse acontecimento, voltei para o acampamento. Quando cheguei, xe kyvy'i (meu irmãozinho) já estava acordado perto do fogo. Contei pra mamãe o que vi, ocultando a parte do Adornado, é claro. Minha mãe se assustou. Falou em apagarmos o fogo e sairmos dali, mas achei que deveríamos continuar e esperar que meu pai e meu irmão retornassem. Aleguei que se os da casa grande não tinham visto ainda, é que não estavam à nossa procura. Mas, de verdade, a minha tranquilidade era saber que o Adornado estava por perto. E esperava, sinceramente, que meu pai e irmão chegassem logo.

Assei os peixes e comemos um deles. Eu sempre atenta a algum sinal do Adornado ou dos da casa grande. Meu irmãozinho brincava por ali. Tinha um pequeno arco com flechas que meu irmão tinha feito para ele e brincava de atirar em frutas de árvores. Quando acabava as flechas, ele as procurava de novo e voltava a atirar. Ele estava começando a aprender a fazer isso.

Jegwaká: o Clã do centro da Terra (COMPLETO) 🏆Prêmio Melhores de 2019 🏆Where stories live. Discover now