OS VULTOS (contos)

O FENÔMENO

Em um dos episódios da série original Startrek, Kirk e Spock interagem com uma civilização alienígena avançada. Quase no final da história, eles descobrem que os seres eram ainda mais evoluídos do que imaginavam, então Spock fez um comentário marcante: "eu diria que eles estão tão distantes de nós como nós estamos da ameba", talvez não exatamente com as mesmas palavras.

Raul lembrava-se dessa passagem, fã que era da série em sua juventude, e jamais imaginou que um dia teria oportunidade de testemunhar um fenômeno que, se não era tão radical quanto o vivenciado por Spock, não deixava de constituir um novo patamar na escala evolutiva.

Filho de pai espanhol e mãe inglesa, vivia em Londres, onde se dedicava a dar aulas particulares para filhos da elite. Altamente preparado, falava inglês, espanhol, alemão, francês, latim e grego, era versado em alta matemática, física e química, e não fazia feio em biologia. Poderia ter ficado rico trabalhando como pesquisador ou consultor de grandes empresas, mas preferiu ganhar a vida como preceptor, além de dedicar parte de seu tempo com traduções de obras que o agradavam. Se não era rico, vivia muito bem com o que ganhava, pois sua fama como mestre não era ignorada pelos milionários europeus.

Numa certa época de sua vida, estando livre de compromissos com alunos, já que os pais de seu último educando se mudaram para os Estados Unidos, foi procurado por uma família aristocrática, residente em Chelsea, para ser o instrutor do filho único do casal. O menino tinha 5 anos e meio, chamava-se Michael e, conforme informado pelos pais, possuía dotes intelectuais extraordinários, portanto não queriam que a criança frequentasse uma escola normal. Temiam que a revelação de sua excepcionalidade provocasse afastamento ou mesmo bullying, além do fato inescapável de que o ritmo do ensino em qualquer escola seria absolutamente inútil para o garoto.

Queriam dedicação integral por pelo menos 6 horas por dia e o pagamento era generoso. Exigiam apenas total discrição, sendo vedado, por contrato, qualquer comentário externo sobre os dotes do discípulo, cujas qualidades eram conhecidas apenas pelos íntimos do casal.

Logo em seu primeiro dia Raul teve oportunidade de reconhecer que estava diante de um garoto diferente. Não no aspecto físico, que era bem comum, com pouco mais de um metro de altura, nem gordo nem magro, cabelos castanhos levemente cacheados e olhos também castanhos. Mas algo em seus modos, no olhar, na conversa, chamava a atenção. Havia sido informado que Michael sabia ler e escrever desde os 3 anos, tocava violino, falava também o francês, aprendera bons fundamentos de matemática e lidava com o computador com desenvoltura, tudo ensinado pelos pais, que agora se viam impossibilitados ou incapazes de levar adiante a formação do filho. Este não tivera contato com outras crianças, primeiro porque as famílias próximas não tinham filhos da sua idade e depois porque sua índole não demonstrava inclinação pelos folguedos infantis.

Como primeira providência, fez um apanhado dos conhecimentos do aluno, em conversas diretas, por meio das quais ficou espantado com o nível a que chegara o menino, desconhecido até mesmo pela família. O garoto passara batido pelas histórias infantis dos Irmãos Grimm, Carroll, Kipling, já curtira Stevenson, Melville, Scott, avançara por Swift, Defoe, Verne, Wells e já estava se distraindo com Dickens. Afinal, a vasta biblioteca da mansão não deixava nada de fora para uma mente ávida. No violino Michael tocava quase como um profissional, mas a esse respeito Raul não poderia acrescentar nada, já que música não estava entre suas aptidões e deixou claro isso para os familiares. Caso quisessem desenvolver as habilidades do menino teriam que contratar um mestre do ramo, mas foi informado que não tinham essa prioridade por enquanto.

No início Raul decidiu avançar na matemática e como o garoto já conhecia muitos conceitos, começou trabalhando com as noções de polinômios, fatoração e equações. Como uma esponja o aluno absorveu tudo rapidamente e em pouco tempo já estava resolvendo equações complexas, expressões exponenciais e cálculos trigonométricos. Raul estava atônito. Era como se o menino já tivesse tudo na cabeça, e o mestre só espanasse a poeira para descobrir o brilho oculto sob ela.