UQBAR

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Em seu magnífico conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Borges nos apresenta um mundo imaginário, Tlön, criado por uma organização misteriosa, Orbis Tertius, associação de demiurgos que se atribuiu a tarefa de engendrar um planeta, uma civilização com toda sua estrutura geográfica, social, cultural, histórica, científica, filosófica e política devidamente descrita em quarenta volumes. Com isso Borges se diverte construindo uma sociedade inteiramente baseada no idealismo mais radical e passeia por outras especulações filosóficas típicas de seu estilo, que mistura ficção e não-ficção.

Mas na primeira parte do conto ele se refere a Uqbar, um país imaginário situado na Terra mesmo e vagamente localizado em alguma parte do Oriente Próximo, conforme informações que obteve numa edição anômala do volume 46 da fictícia Enciclopédia Anglo-Americana. Tudo começou a partir de uma citação de Bioy Casares a respeito de memorável sentença de um heresiarca de Uqbar que Casares leu no verbete sobre o país no referido volume.

Borges fornece vagas indicações da localização de Uqbar, citando locais e regiões sem qualquer vínculo com a realidade. Apenas manipula referências à Armênia e ao oriente próximo, notadamente citando Erzerum, provavelmente uma cidade da Turquia com nome real de Erzurum.

Apaixonado pelos escritos de Borges, Arturo Valverde acreditou que o autor estava sim se referindo a um país real envolto nas brumas do mito e que dera indicações enigmáticas sobre sua localização, destinadas apenas aos que realmente se dedicassem a decifrar suas mensagens herméticas. Viúvo, rico, excêntrico, místico e moderadamente louco, decidiu pesquisar a fundo e dedicar o resto da sua vida para localizar aquele território, ainda que só restasse história.

Para começar, concluiu que Jorasã poderia ser a cidade turca atual de Geresun, da mesma forma que Erzerum é com certeza Erzurum. Embora mais difícil de alinhar, seria possível atribuir Tsai Jaldún a Trabzon, considerando as variações históricas do nome atual? Isso circunscreveria uma região que até certo ponto justificaria a atribuição da fronteira sul com o delta do rio Axa, o qual Arturo relacionou com o atual rio Arax, cuja nascente é próxima de Erzurum, passa pela Armênia e deságua no rio Kura, já em território do Azerbaijão. Era uma dificuldade, pois tratava-se de área muito extensa, envolvendo trechos de vários países. Mas na época de Uqbar, não seria possível uma nação cujas fronteiras desconheciam as atuais divisões políticas? Não conseguiu identificar nada relacionado com os nomes Mlejnas e Tlön, que supôs realmente serem sítios imaginários constantes da literatura de Uqbar.

Com esses registros, decidiu viajar para a região assinalada e procurar indicações de uma possível nação esquecida. Contratou um argentino intérprete de turco e armênio e, com seu secretário particular, embarcou para a Turquia.

Montou sua base em Erzurum, onde se instalou em ampla suíte no melhor hotel da cidade. Em seguida, procurou agentes locais especializados em turismo a fim de contratar um guia com conhecimento da área abrangida pela cidades que identificara, mais aquela banhada pelo rio Arax.

Teve alguma dificuldade no início, pois os guias indicados eram versados apenas nos locais mais procurados pelos turistas e isso era o que menos interessava a Arturo. Mas finalmente encontrou um homem de meia idade, de nome Aziz, que disse ter vivido muito tempo na região visada, mostrando aparente familiaridade com cidades, rios e outros acidentes geográficos apontados por Arturo nos mapas que trouxera.

Cumpridas essas primeiras providências, reuniu-se com sua equipe para traçar a estratégia de pesquisa.

Primeiramente, inquiriu Aziz sobre os nomes citados por Borges no conto, principalmente os termos Tsai Jaldún, Mljenas, Tlon, Axa, Esmerdis. Quem sabe em sua vivência local teria ouvido algo relacionado, seja nome de vila, cidade, acidente geográfico ou pessoa? Aziz desconhecia completamente esses nomes, apenas concordava que o rio Axa poderia ser o atual Arax, embora este não tivesse um delta, já que desaguava em outro rio, e muito menos um delta com ilhas onde viviam cavalos selvagens.

Arturo imaginava que entre tantos povos que habitaram a Anatólia e não só ela, mas toda aquela parte do mundo até o Mar Cáspio, quem sabe algum não teria constituído Uqbar? Talvez um ramo esquecido de nação obliterada por outra, na sucessão de hatitas, hititas, hurritas, frígios, cimérios, assírios, lídios, medos, persas, gregos, partos, romanos e turcos?

Afinal, naquelas paragens montanhosas, sempre haveria possibilidade do isolamento de um grupo que poderia construir sua própria identidade. Mas esses grupos seriam minúsculos em comparação com o poder adjacente, jamais teriam qualquer chance de desenvolver uma nação e construir uma cultura independente como Borges disse a respeito de Uqbar, a menos que fosse uma das dominantes naquele mundo, como os reinos hitita, Urartu ou Mitani. Mesmo com todas as dificuldades daqueles tempos, em termos de locomoção e acesso aos locais mais problemáticos, é indiscutível que aqueles povos não tinham limites para seus objetivos. Todas as restrições geográficas eram superadas mais cedo ou mais tarde e nenhum ponto de todo aquele território ficou inatingido ao longo da história, exceto talvez estruturas recônditas, cavernas e formações pouco importantes.

Conforme Aziz sugeriu, há em Erzurum uma ótima biblioteca com tudo que está disponível sobre a história local: porque não começar por uma pesquisa para identificar elementos distintos da cultura média atual da Turquia?

Propôs considerar o fato de que o povo curdo, que habita boa parte da região investigada por Arturo, incluindo Diarbaquir e o lago Van, e quase chegando a Erzurum, é descendente das civilizações antigas que se sucederam por milênios naqueles sítios. Os próprios curdos assumem os medos como seus antepassados, enquanto alguns historiadores lhes atribuem ascendência hurrita. Falam língua de origem indo-europeia, aparentada ao persa, mas praticamente não existe literatura curda histórica, a não ser alguns poemas, totalmente em desacordo com as informações do verbete citado por Borges.

Arturo considerou essa história parcialmente compatível com as indicações de Borges, pois o território curdo ia do leste da Turquia a trechos do Irã, Iraque e Síria, sem contar as antigas ligações com a Armênia. Resolveu que viajaria por todo ele e seguiria, na medida do possível, o curso do rio Arax até o Kura. Durante as viagens anotaria os elementos compatíveis com as poucas indicações do verbete, e tentaria descobrir eventuais similitudes etimológicas com o nome Uqbar e com outros citados no artigo da enciclopédia.

Juntaria material para uma monografia cuja redação empreenderia tão logo voltasse à Argentina.

Seu périplo durou dezoito meses, sempre com o atento suporte de Aziz e seus auxiliares argentinos, período em que visitou fortalezas, templos, bibliotecas, ruínas, cavernas, lagos, rios diversos - principalmente aqueles que desaguavam em lagos - ilhas e penínsulas lacustres, e muitas pequenas cidades históricas encravadas naquele relevo acidentado.

Voltou para a Argentina convencido de que Uqbar foi um país histórico e doravante se dedicaria a organizar o calhamaço de informações colhidas na viagem para produzir a monografia destinada a provar sua teoria. Trouxe consigo Aziz, por quem adquirira grande afeição durante sua estada no levante e que o ajudaria a pôr em ordem os inúmeros registros coletados e também, por que não, ajudá-lo a recordar pontos eventualmente esquecidos durante a saga.

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