Parte 2

3 0 0
                                    

Marilú encarou a lâmina como estudar reflexo de sua figura. Eu chorava devido joelhos ralados. Ela agachou na minha altura, vi seus ombros descascados. "Meu dente-de-leãozinho..." Soprou machucados, "É só machucadinho." Com ternura e aflatos achocolatados. Massageou merthiolate para rápida cura. Marilú foi Primavera original que criou cantinho de leitura: querubins entediados ao ar livre nas cadeiras em círculo e ela no centro encenava... "Fee-fi-fo-fum!" Sílaba a cada pisada, João e o pé de feijão para incentivá-las a plantar um também. Nós mais novas tínhamos desculpas das mentes hiperativas para retirarmo-nos e distraímo-nos dentre tulipas de junho, correndo atrapalhadas como se fosse em misterioso bosque, era apenas jardinzinho. E borboleta laranja pousou ao nariz de Melody, fazendo-a vesgar os olhos para ver. Outra garotinha correu lá pegar uma câmera enquanto ela paralisou-se de pé com pernas e braços dobrados. Saiu na foto o espirro violento e pobre inseto foi soprado pra longe. Catarro escorria da sua narina, tentar fungá-lo só piorava a situação; ao ver criatura sugando universo à fungadas, só pude pensar no quanto era perfeição. (Ao menos assim interpreto hoje, os pensamentos daquele tempo). "Hã? Não tô gripada." Me apaixonei por aquilo? Pudera eu explicar os maquinários da mente infantil.

Ouvimos risadas próximas causadas pelo peludo amigo, as mais velhas divertiam-se com beagle. Da boca de cada, nomes únicos: Marcos, Mijão, Dumbo, Bolinha e Querido. Nunca foi decidido, bichinho era tão confuso com seu nome quanto eu estaria por minha identidade, já naquela idade, claro que só depois tornou-se grave. Ele farejou a terra, rodeou e defecou ao meio de todos no montinho onde Marilú plantara semente. Causando gargalhadas interrompidas por grito ao portão chamando mãe, e a mulher foi atender deixando observação: "O cocô vai servir de adubo." Isso será súbito, porém preciso esclarecer que Leo era seu filho de verdade. Na maioria dos dias, como naquele, após pai busca-lo da escola pra casa, o trazia pro abrigo. Menino que brincava com bonecas era popular entre nós, mas ele tinha alguns outros interesses. Trouxe dois volumes do mangá Yotsuba to! e fui principal alvo para exibição simplesmente por ser asiática... mas eu preferia Turma da Mônica. Tentei em vão decifrar símbolos que remetiam-me à conceitos diferentes: "A" remetia à montanha, "M" à cama, "O" gordo, "R" escorregador...

"Posso ler?" Melody aproximou, sentou encostada na cerca arco-íris e dos lados a observamos tropeçar em palavras. Meu olhar das páginas subiu a teus lábios e vi-os explodir no limpo "P", simples "A". Sorrir ao "I" e confuso "X" embaralhar saliva entre bochechas. Eles queriam consumir o macarrão nas sílabas "ÃO". Então outra colega cutucou Leo à lateral fazendo-o persegui-la e restou só nós dois. Precisou meia hora para eu me entediar e sair. Ao sofá na sala vi por trás Marilú beijando seu marido; foi a primeira inveja. Após minutos encarando igual fantasma, perceberam minha presença e sorridente casal se aproximou. Eu massageava indicador com a outra mão, cabeça baixa mas olhos encarando-os acima, no que o homem agachou, aonde face deveria estar era branco como lousa... ali surgiram letras pretas: "Quem é essa menininha bonita?" Sorri e saí a passos tímidos de volta aos fundos onde Leo recolhia as cadeiras plásticas como se fossem halteres, esbanjando músculos inexistentes em poses heróicas para aplausos sarcásticos dos cuidadores e menininhas sem face... (Esses seres estranhos espalhados na memória são Terciários; estão por toda parte.) Otávio brincou sobre Leo ser sortudo sempre próximo das meninas, e resposta foi explosivo "Elas são minhas irmãs!" Que todos silenciou. Enquanto isso, Melody continuou lendo até o anoitecer, ainda no capítulo cinco...

Às oito horas, entramos três (Mais o Beagle) ao carro do marido que nos levaria até lar da mãe para lá passarmos noite. O motivo disso eram meus ouvidos sensíveis. Todo junho próximo dali era montado palco e por quatro dias até uma da manhã infernizavam vizinhos caseiros com músicas acima de cinquenta decibéis. Tão cruéis... Crianças adoravam desculpas para dormirem tarde, mas eu não. Casal foi no banco da frente com cão, e nós nas cadeirinhas atrás. Fomos por terra esburacada de avenida Atlântica, sentindo enjoo, mas visão beira mar amenizou. Passando pelo Píer até Iriry e curva à rua Aracajú até casa de Marilú. Estacionamos frente ao portão marrom no exato momento em que vômito de Melody sujou nossos pés... Que casarão! Corri com cão e Leo pelos cômodos chiques batendo plásticas espadas abaixo do lustre. Então percebi que Melody lia quieta ao sofá, veio todo o caminho lendo... fui convidá-la para a brincadeira. Repentinamente seu rosto ascendeu e explodiu em gargalhadas. "Hahahaha!" Adultos vieram checar assustados para se deparar à menina rolando ao chão "Hahaha..." com mão na barriga.

Exagerada, correu pruma cama e se debateu no colchão, braços e pernas, cima e pra baixo à gargalhar. "Ficou doida." Brincou Marilú. Foram aos ecos das risadas psicóticas que fui socado por existência, pois pela primeira vez tomei consciência de existir. Percebi meus primeiros três anos terem sido apagados da memória como se o universo arrancasse doce da criança. Dos instintos às pulsões deixamos de ser macaquinhos... O riso fora pelo nono capítulo do fofo trevinho. "Se gosta de ler..." Disse mãe, "Vai gostar disso." Abrindo porta à sala deu num quartinho livraria. Grande janela na frente com visão pra piscina, cinzeiro à travessa, e próxima poltrona cinza. Paredes direita e esquerda eram estantes literárias. Havia pilha de livros na mesa do centro, aquele mais grosso com capa preta e círculos dourados chamou nossa atenção: O Senhor dos Anéis. Olhos brilharam com mapa da Terra Média, intoxicante cheiro de aventura. Olhamos um pro outro, aquelas muralhas de texto precisavam ser escaladas! Se amostrando recitou "A, E, I, O..." circunferência da boca diminuindo até biquinho do "U" seguido de sorriso orgulhoso; às vezes em cima havia traço, macarrão, ou chapeuzinho bizarro.

Senhorita PrimaveraWhere stories live. Discover now