Parte 9

2 0 0
                                    

Veja bem, o processo de adoção no Brasil é demorado. São etapas atrás de etapas para avaliar se o adulto está apto a adotar. Pode levar meio ano, mas claro, isso não é preocupação da criança. Eu vi diversas vezes, a felicidade no rosto das colegas selecionadas; felicidade e pitada de nervosismo. Porém foi diferente com Melody, em junho de 2026, quando recebeu a notícia da sua seleção, a expressão no seu rosto foi tédio e preocupação... E como vitórias régias, boiando de barriga pra cima entre as boias macarrões na piscina, as meninas com roupa de banho relaxavam no que deveria ser uma festança no casarão da nossa mãe para comemorar... Assistindo aquilo, decaiu sobre mim a realização de que talvez eu nem fosse mais vê-la. Não podia jogar todas as minhas palavras ao vento então precisava dizer o que sentia e entregar a maldita cartinha...

No que eu refletia sobre essas coisas. Vi-a vir correndo lá de dentro com seu biquíni púrpura... Caro leitor(a), lembras do beagle da Casa dos Querubins? Devido a chegada duma criança que era alérgica à seus pelos, o bicho passou a morar na casa de Marilú; Melody ficou feliz pois não gostava dele, houveram muitas vezes que pregou-a "peças". Lembro-me quando despedaçou o papel higiênico e deixou-a presa no banheiro. Quando ela escorregou no xixi ao corredor, ou vômito no quarto; ou quando várias vezes seus chinelos devorou, e acordou-a cedo com latidos...

Bom, tudo isso para dizer que enquanto eu me abanava com meu boné, assistindo minhas colegas, Melody veio em disparada e à borda suas pernas foram arremessadas pro ar! Me encolhi num espanto. Foi um violento escorregão, desta vez causado pelas fezes do animal. À frente das águas reflexivas, só percebi a silhueta, e faltou apenas uma pirueta para completar aquela forte queda que fez-a impactar contra o chão e escorregar de costas, riscando um rastro marrom pelo branco piso até a piscina; caiu lá dentro, foi salva aos prantos, com as duas mãos na nuca e nariz sangrando. Ela xingou e xingou, amaldiçoando todos os nomes do diabinho (Nunca foi decidido) como Deus amaldiçoou o Egito com suas pragas.

Um dia depois em nossa casa, tocaram a campainha. Ao atenderem estava lá um jovem senhor, parecia ter vindo do Palácio do Planalto, engravatado naquele calor. Um terno chique, barba rala, topete com risca lateral e face vazia; sim, não lembro dos olhos, nariz ou boca, apenas o nada absoluto onde se formou "prazer te conhecer" no que ele estendeu orquídeas amarelas à Melody. Ela pegou, cheirou e agradeceu. Era seu adotante. Os dois foram passear para se conhecer, e ele a traria pra escola assim que a hora chegasse. Ver aquilo aumentou meu desespero, e pensei como talvez nem valesse a pena entregar a cartinha, já que não iria mais vê-la mesmo...

Na sala de aula, o português já estava sendo ensinado e nada da menina aparecer. Fiquei encarando a porta, ansioso, esperando ela chegar. Tia Aline escrevia no quadro. Pietro e companhia (incluindo Antônio, que estudava em outra sala mas estava sempre visitando seu melhor amigo) ficavam de murmurinho no fundo, eu e Leo sentados juntos logo à frente ouvíamos suas barbaridades; algo sobre o quão grande era o traseiro da professora, e descobertas de novas atrizes pornográficas. Apertei os punhos, mordi os lábios com raiva. Quando perceberam, seus assuntos mudaram o foco para mim e Leonardo. Referiam-se a nós como "namorados" e me cutucavam a provocar. Meu corpo se preparava para arremessar um soco porém meu amigo só disse "Ignora" segurando minha mão que já tremia. Assim me desloquei dali para o outro lado, alguns chamariam de fugir, mas eu achei muito maduro de fato...

Na minha nova carteira fiquei remoendo meu desconforto, quando vi algo até mais desconfortante. A professora sentou no seu lugar e talvez fosse impressão, mas percebi-a me encarar com olhos famintos... como se algo fisgasse sua atenção, e sorrisos sucintos, minha óbvia vergonha continuava puxando aquele anzol; foi um sentimento distinto quando desviei o olhar do caderno, e vi seus olhos me penetrarem de forma tão direta quanto a prosa deste capítulo, não! Por puro instinto, pedi para ir ao banheiro e saí antes que respondesse. No caminho eu tremia, Aline sempre foi esquisita, perseguiu nossa turma do quinto ao sexto ano dizendo ser a melhor que já teve... Distraído em confusões, girei a maçaneta e me surpreendi pelo recinto limpo e rosado, sem fedor pútrido ou genitálias desenhadas. Era o banheiro feminino. Logo fui expulso a base de gritos e risadas irritantes... Melody chegou depois, como esperado. Mas eu já estava por aqui! Então acabei nem ligando...

De volta pro abrigo, Ela novamente estaria fora, agora para dormir numa festa do pijama com suas amigas; deveria ter tantas... No meio tempo, estimado leitor(a), outro acontecimento que precisas saber é que Lara e Sara começaram a trabalhar como voluntárias na Casa dos Querubins. Naquele final de tarde, uma bebê começou a chorar, Lara foi correndo socorrer porém assim que a segurou e começou a ninar, a criança esgoelou ainda mais... Atrapalhada, ela tentou chupeta e depois mamadeira, caminhando de lá pra cá à balançá-la e murmurando músicas infantis. Por fim a pequena golfou sobre o ombro da garota, que com vergonha entregou-a para sua irmã. Assim a neném cessou o choro após algumas palavras maternas. Saíram todas do quarto e permanecemos só nós dois, eu sentado à cama, e Lara em frente da janela sendo iluminada pelo pôr do sol no horizonte. Retirando sua camisa suja comentou "Sempre faço tudo errado..."

E perguntei o que isso quer dizer. Enquanto fitava seu corpo semi-nu, biquíni azul ao bronzeado. "Nós somos idênticas fisicamente, mas eu sou pior. Trabalho, namorados..." Falta de ar, queria tocá-los, os seios que balançavam a cada passo como gelatina. "Até com crianças, ela é melhor em tudo nessa vida." Riu, e encarei o piso para me acalmar. A confortei dizendo não serem idênticas, "Então fala algo que nos diferencia." Ponderei, talvez a quantidade de sardas fossem distintas, mas não era a hora para contar. Talvez Sara fosse mais gorda, mas nem queria arriscar. Talvez seus cheiros, mas eu não era cão para notar; só notei que como o acender dum isqueiro, formigamentos na minha virilha, pois algo sobre as gêmeas de dezessete incendiava em mim uma fogueira... Talvez seus peitos fossem maiores, sim, montes de gordura macios e redondos; engoli seco e prestes a comentar, fui interrompido...

"Pessoal, emergência!" Leonardo adentrou no quarto, e exclamou desesperado, "Richarlyson sumiu!" Assim era como ele chamava o beagle. O que se deu a partir daqui, foram equipes de busca... Os adultos iriam perguntar em locais de trabalho, as crianças, na escola. Todos fizeram posts em suas redes sociais e para auxiliar, as gêmeas imprimiram cartazes com sua foto, e a recompensa de cem reais para quem o achasse. Duas noites depois, fomos perguntar às pessoas da igreja ao lado e descobrimos algo bizarro. Uma senhora lamentou que sua gata prenha também havia sumido, assim como os coelhos dum amigo. Um fazendeiro contou que alguns leitões e galinhas estavam igualmente desaparecidos. E neste circo de desaparecimentos, alguém brincou que pelo menos, os ratos dos esgotos próximos foram vítimas, então algo de bom acontecera.

Na saída da capela, fomos abordados por um carro preto que berrava um funk em alto e ruim som... a janela desceu e ali estava Fernando, num veículo entupido de mulheres bêbadas. "Boa noite, crianças!" Ele comprimentou. Neste momento, senti José me puxar para perto dele; o senhor padre olhava aquelas pessoas como se do topo dum monte, vendo seu reflexo no mar de imundice lá embaixo. Era tanto nojo, quase percebi um raio no espaço entre eles onde seus olhares se encontravam... "Tudo bem?" Fernando perguntou.

"Não..." Leo começou, com olhos molhados. "Meu cachorro sumiu. O senhor anda a cidade toda, né? Por favor, ajuda a gente a procurar."

"Awn, tadinho." Disse uma das moças no carro.

"Eu ajudo a procurar, ok..." Disse Fernando, "Mas tu parece uma criancinha. Sempre espere o pior das situações, assim tudo machuca menos. Então para de chorar; você é um homem, ou um rato?" E ao ouvir isso, padre José resmungou, achei que iria argumentar por alguma razão mas cruzou os braços e nada falou. Então Leonardo engoliu o choro, e como se tomado por força de vontade correu a distribuir cartazes. Passaram-se dois dias. Pôsteres de procura-se foram postos por todo o bairro. Enquanto Leo explorava a cidade em busca do cachorro, Melody e seu adotante exploravam um possível relacionamento; ela me contou que era bastante rico, tinha uma casa maior que a de Marilú, e um husky dramático...

Contava isso enquanto sentados à praia, tomávamos açaís que comprara com seu próprio dinheiro (O que os meninos davam). Alas, veio Pietro, Pietro Percevejo bufando e pisando forte na areia, apontou para nós e como pode? O dinheiro que ele dera? Usado para alimentar outro menino? Absurdo! Argumentou, perguntando quem eu era sequer, mas ficou zangado pra valer quando Melody explicou, de maneira que coubesse em seu crânio vazio, que agora o dinheiro era dela e podia fazer com ele o que bem entendesse. "Vamo resolver no futebol!" Propôs para mim, e minha amiga suspirou... Inacreditável, como essas pessoas existem? E nem eram raros, este Percevejo era uma clara representação do ser humano brasileiro...

Senhorita PrimaveraWo Geschichten leben. Entdecke jetzt