Parte 14

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"Fique à vontade." Ela disse, no que tiramos tênis ao tapete Bem Vindo. Naquela sala, sentei num sofá rasgado que mais pareceu um pedaço de pau. Luz amarela, cheiro de incenso; uma pequena escultura de sereia com seios à mostra pregada à parede, pela qual Aline percebeu minha atenção capturada. E visão foi bloqueada por algodão alcoolizado massageando a roxidão na minha face. "Foi por menina, né?" Senti o frescor do seu hálito. "Vocês..." Poderia me suicidar nas profundezas daqueles olhos "Não tem jeito." tão próximos. Abaixo deles o nariz arredondado, e lambeu seus lábios que abriram revelando dentes perfeitos, "Esse remedinho..." dentre teias de saliva, "Ajuda com dor." Na sua palma havia um comprimido, neguei me desculpando por não estar dolorido e Aline falou que eu tinha uma inteligência adulta. Sentou-se ao lado olhando para mim, mãos entre coxas como tímida adolescente. Seu pé liso com esmalte roxo rastejou pelo piso e massageou acima do meu, "Bop!" disse e riu. Levantei quieto, sem pensar, caminhei para a saída mas ela ressurgiu e girou chave à maçaneta. Me pressionei contra a parede ao canto, frente a silhueta risonha...

À teia desta Viúva Negra, que caminhou na minha direção com sorriso contornado por lábios secos. Cabelos longos e embolados fediam, decrépitos. Ela apertou meu pulso deixando minha mão dormente. Caí sentado no piso ao ver que a figura monstruosa se erguia sobre mim, exalando o odor dos hormônios e adrenalina que a fizera arrepiar; e este arrepio deixou claro aqueles pelos selvagens nos braços imprenssando meu corpo no chão. "Você quer ser homem?" Sibilou. Tremi a cabeça pros lados. Ela sentava em minha cintura, com as pernas separadas. Suor escorreu às suas grossas sobrancelhas, então esfregou a testa com o antebraço, desmanchando sutil corretivo e revelando cravos, poros dilatados e uma horrenda mancha preta... um câncer! Logo Aline se inclinou para sua boca tocar na minha, podes ver? Nariz encouraçado, unhas podres e quebradiças perfurando minhas bochechas enquanto nossas línguas se entrelaçavam como cascavéis acasalando. Senti leve gosto de peixe? Feijão? Fumo? Aquele foi o meu primeiro beijo...

Seus seios apertavam meu peito à medida em que ela chupava cada gota de saliva possível. Pude apenas aceitar calado, esta minha fúria invisível, este ato de romance deformado. Mesmo após o mundo já ter acabado, Aline puxou meus braços para cima. "Levanta." E permaneci de pé com corpo mole, sem tentar fugir, sem ver lógica em mais nada... Titia Morte arrancou meus shorts e cueca das pernas, e se chocou, confusa encarou o epicentro da minha angústia. Um buraquinho cicatrizado, ausência de sexo. Sua expressão contraiu num estranho arrependimento, surpreendente compaixão. Então me abraçou um abraço acolhedor. Eu abracei de volta para aliviar o insuportável constrangimento; chorei em seu ombro como chorar no ombro da minha mãe...

Ela me levou para casa depois disso, numa viagem silenciosa.

Ao portão da Casa dos Querubins, Aline dialogava com funcionárias enquanto caminhei pelo corredor de crianças que me fazendo tantas perguntas, mais pareciam repórteres... não obtiveram resposta. No quarto, sozinho me deitei, encarei o teto até ouvir seu carro ir embora. Então Marilú adentrou e a porta fechou, sentou na beira da cama e falou, "Você sumiu, e tava brigando na rua? Tem ideia do quanto ficamos preocupados?" Cobri minha face com a colcha e fingi não ouvir as perguntas e lições de moral. Talvez eu tenha escondido o que ocorrera pois... ora, aquilo foi óbvio e normal, seres humanos são assim, e não há nada que eu possa fazer para mudar este fato. Esta mãe social (Que era paga para ser nossa mãe) nem me despertava confiança para falar sobre algo desse tipo... Ela desistiu duma reação, deu-me um beijinho na testa (Manchando de batom o tecido que me cobria) e se retirou. Eu só queria quebrar tudo! Matar alguém, não importava quem... Mas da mochila tirei meu caderno, e às suas páginas brancas extravasei minha frustração...

Ele se trancou num quarto de angústias, e engoliu a chave
Ah, como ela desceu rasgando
Ele escreve maldições moribundas, rodeado pela negra ave
Toda sua fúria abafando
Ele veste pele de humano como se fosse bicho
Sentando em seu trono feito de lixo
Mas um dia sairá daquele covil. Que Deus nos proteja
Serão mortos mais de mil, quando visitar essa aldeia
Oh, monstro tão vil, guardião de toda inveja
Desgraça do Brasil, poupe ao menos nossa igreja
Escutem! Pobres crianças...
Quando trombetas soarem, ergam suas lanças
Para pelo menos tentarem... porém farão apenas cócegas
Àquele que sente paixão pela morte, um demônio sem dono
Àquele coitado sem sorte, pobre Menino Outono

Leonardo entrou no quarto, sorridente como sempre, sua mãe havia pedido que viesse falar comigo pois eu estava triste; errado, o que eu sentia era raiva e ódio. Ele falou e falou tentando me alegrar, quando percebeu que eu não estava pra conversa, pegou a caneta e começou a desenhar: rostinhos, flores, corações e bolas de futebol. Pulando de assunto em assunto disse em certo momento: "Sabe, às vezes parece que mamãe ama mais vocês do que eu." Algo estalou na mente. Me levantei, caminhei até a porta e tranquei. Então de costas para meu pedacinho de confusão, abaixei os shorts e ordenei "Enfia." Não vi sua reação pois estava virado, porém ouvi um suspiro espantado. Após silêncio de segundos, ele tirou para fora e me encostou, mas não teve coragem de pôr; ao invés disso, saiu correndo sem nada dizer. E ali fiquei ponderando, o que me tornei? Como decaí tão lá embaixo? Ira, nojo e tristeza se entrelaçaram; e desabrocharam em desesperança. Não Aline, eu não quero ser homem... E meus pensamentos vagaram à Melody.

Senhorita PrimaveraWhere stories live. Discover now