Parte 8

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Resumindo: cresci como criança esquisita que, no abrigo, sentia-se como violão sem cordas ou orquestra sem maestro. Menino Yuri, cujo raro era ver sem boné. Yuri se atrapalhava todo sempre que Melody estava por perto. Yuri passava dez horas por dia no celular que Otávio deu, lendo livros inteiros. Yuri, apesar de reconhecer-se como garoto, orgulhava-se de não ter um pênis... por quê? Oh ele estava acima. Acima das nojeiras libidinosas que humanos se gabam tanto, como moscas se gabam do maior amontoado de esterco. Acima da AIDS, herpes, sífilis. E também acima da maldade masculina... ou pelo menos assim explicava aquela criança, Yuri, que tinha seus cadernos escolares repletos de textos que não foram resultantes das suas aulas. E mesmo entre toda aquela beleza textual, havia um poema especial. Uma cartinha de amor para sua querida amiga que começava com "Se estações fossem pessoas, tu serias Senhorita Primavera..." e seguia-se até o limite do seu coração. O quadro fora pintado, só faltava entregar, porém logo cinco anos se passaram e nada da coragem aparecer. Já estávamos com onze anos nas costas...

"Hoje, criaremos nossa própria história." Propôs Marilú, em nosso cantinho de leitura.

"Quero fazer a melhor do mundo!" Disse Melody, "Senão, pra que criar qualquer coisa?" Acho que naquele dia, criamos uma sobre Sherlock Holmes tentando solucionar um crime cometido pelo Pinóquio... ou algo assim.

"É impossível, Mel... arte é diferente para todos. Mas personagens são tão mais legais que pessoas, né? Tudo que fazem tem motivo, é construção prum excitante clímax." Sexualidade e literatura, não há melhores temas para descrever minha vida. No quinto ano, houve professora Aline...

E também os Meninos de Melody (Bellus Obsedy). Do fundão, ela me viu admirar aquela pintura prosaica: silhuetados pela janela atrás aglomeravam-se enxame à sua Rainha Alegria. Copiavam seu dever e carregavam sua mochila. Se mandados, lamberiam o chão onde pisava. Melody encarando-me sorriu suavemente e íris azuis rolaram à diagonal. Nem de todos posso lembrar mas dois se destacam na memória do fundamental: Antônio e Pietro. O primeiro cresceu ginofóbico, projetando o capeta em toda mulher. Mas Pietro? Pietro não cresceu... ele entrou na sala com buquê de rosas, atropelou seus rivais e estendeu-a para paixonite. "Uou, nem parece você..." Disse Antônio, "Tá apaixonado mesmo, ein." A menina sorridente aceitou, segurou sua nuca e o deu beijo francês; que durou até minh'alma apodrecer. Só poderia a descrever como beijoqueira. É assustador como ato superficial pode-se traduzir emoção tão surreal em mentes imaturas. Senhorita Primavera, no tocar do sinal, saltitou frente ao refeitório indo pra saída; atenções adultas e infantis a perceguira. Cozinheiros punham cabeça pela janela da cozinha, faxineiros paravam de varrer. Alguns disfarçados filmavam a menininha, ou deixavam sorvete derreter. Não pude decidir se os mais aterrorizantes eram admiradores, ou a admirada...

Ao quarto naquela noite, Melody reclamava sobre feridinhas no canto dos lábios. Como se pontas de duas agulhas ferventes se tocassem dentro da carne. E haviam fofocas sobre como ela tinha tanto dinheiro... eram os meninos que davam. Com nossas pantufas sapos que agora eram sapinhos (Pois nossos pés haviam crescido), pulávamos de cama em cama, cansadas, animadas pro iminente Natal; até que Melody caiu sentada, uma a cutucou na lateral da barriga fazendo-a gritar risadas e junto à um tremor no colchão, um rouco barulho foi emitido. Gargalhadas explodiram... Logo faziam força com perigo de sujar as colchas, ou iam pro banheiro espumar sabonete nas axilas para emular o som desejado. Houveram piadas de bombas e fogos, e algumas apoiavam seus pés na parede e mãos no chão para peidarem de cabeça pra baixo. Atacamo-nos com cócegas, e a noite encerrou, com competições de flatulências... e desagradável odor.

Acordamos. Em pleno sábado às sete da manhã, meninos melossecados chamavam-na no portão. Naquele morno dia nublado, vestiu-se aos bocejos e foi atender. Com Marilú atrás para vigiá-los foram passear e fui também silencioso. Segui solitário, aquele grupinho alegre lucrando cada desculpa de tocá-la pelo calçadão. Certo momento, percebendo minha existência Antônio desacelerou ao meu lado e perguntou: "Qual o seu nome mesmo?" Essa educação piedosa não obteve resposta, então ele olhou as crianças na frente. "Ela é perfeita demais..." Observou, "É bizarro." Na praia eles brincavam, se banhavam, e desenhavam corações na areia à seu redor. O grupo capturou a atenção de Marilú ao ponto em que sorrateiro me afastei, caminhando pela borda, deixando pegadas cada vez mais próximas do mar. Então água escalou meu joelho, cintura, peito; até um buraco abrir sob meus pés e oceano me enforcar... Debati-me no desespero, vendo só mãe sentada à orla me ignorar. Tentando gritar "Socorro!" e sendo impedido por água que tapava minha boca para as ondas me sequestrar. Era isso, minha morte, inconsciente suicídio... Mas por sorte, senti mãos me segurarem junto à pedidos de calma. Uma moça ruiva com sardas...

E mais outra com rosto similar veio de nosso encontro pilotando uma lancha. Elas me guiaram até areia seca, e após tossir todo o susto, olhei para frente e vi-as de perto: as duas garotas agachando-se na minha altura sorriam sorrisos reconfortantes junto ao maiô rosa e biquíni azul. Ruivas, altas, e idênticas como clones "Você tá bem?" Lara e Sara eram seus nomes. E veio correndo Marilú, a tentar entender o ocorrido, logo me abraçou para confortar seu querido. Então apareceu um homem gordo sem camisa e com uma latinha de cerveja na mão, também perguntou da situação...

"Bwahahahaha..." Ele gargalhou após a explicação.

"Isso não é engraçado, pai." Disse Lara, e me espantei na sua última palavra...

"Minhas filhas são salva-vidas!" Riu o moço, orgulhoso.

"São mesmo..." Disse Marilú, "Ele é uma criança do abrigo, eu sou a responsável aqui e deixei isso acontecer... Em nome de todos na Casa dos Querubins, muito obrigada."

"Que isso..." Disse Sara, "Não fizemos mais que nossa obrigação. Quem iria deixar um garotinho se afogar?"

"Garotinho?" O homem, que mais tarde descobri ser chamado Fernando, indagou, "Eu achei que era um abrigo só para meninas?"

"Ah, sim... estamos fazendo mudanças, Yuri é o único menino na casa por enquanto." Explicou Marilú.

"Hmm..." Ele me encarou lá de cima com um olhar penetrante. Incrível, do fio de cabelo mais alto às solas dos pés, aquele senhor não poderia ser mais diferente do que suas filhas. Enquanto elas tinham silhuetas esbeltas, Fernando era parrudo e de aparência desleixada, seu cabelo nem era ruivo, e sua altura mais baixa. Eu pensei, assim são os pais. A verdade é que alguns anos depois, ele seria o meu também...

Senhorita PrimaveraWhere stories live. Discover now