Parte 11

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Nos separamos pelos diferentes bairros em busca do bichinho. Mas eu e Melody permanecemos por ali mesmo, indo e vindo ao calçadão de Costazul. Certo momento, ouvimos um senhor reclamar num mercadinho sobre algum gato nos arredores ter matado seus pássaros; minha amiga só acelerou os passos adiante, e fui seguindo. Até pararmos na avenida onde estava tudo montado para a festa junina. "Lembra que você tinha medo da barulhada?" Ela comentou enquanto subia no palco vazio. "E a gente ficava conversando pra te acalmar, eu me sentia uma mãe." Tap Tap ecoava seu caminhar na madeira, então parou no centro, olhou a paisagem da praia à frente, cercou sua boca com as palmas e gritou "Mijão!" Logo o vazio repetiu a última sílaba. Assim sorri, subi ao seu lado e começamos juntos, a chamar os nomes do cachorro. "Bolinha!" chamamos, "Oliver!" e "Gon!" O espaço refletia nossas vozes até que uma senhora passageira reclamou e nos mandou calar as bocas... Melody a encarou com certa expressão de fúria sutil camuflada por sorriso complacente. Senti como se a qualquer momento fosse avançar tipo um felino raivoso, porém ignorou. Sentou na borda do palco e disse, "Mas era muito fofo, né?"

E lembrei da carta... Eu estava sozinho com ela, o momento perfeito para entregar. "Lembra quando te contei sobre o planeta de diamantes? Nem sei porque lembro disso." Sentei ao seu lado, Melody olhou profundamente para mim, com seus olhos que pareciam ter dentro o céu ou talvez um inferno congelante. "Também lembro daquela guerra de travesseiros onde te machuquei sem querer. Ou quando te empurrei do escorregador e tu quase morreu..." Naquela paisagem praiana, falou tão baixo que sua voz poderia ser ocultada pelas ondas, "Sabe, Yuri, eu e ele nem combinamos. Não quero ser adotada, não quero ficar longe de você."

E seu rosto se aproximou com olhos fechados, e fui me afastando. Os calafrios tomaram meu corpo, o relógio desacelerando. Entrei em pânico, afastei tanto, quase deitando, quase gritando socorro. Ela abriu a boca de leve e estava prestes a encostar quando "Ahhhhhhgh..." Um longo berro que veio de longe rasgou todos os ecos e interrompeu sua aproximação. Só vimos nossas colegas virem das várias ruas em direção àquela exclamação. Assim disparei também, deixando-a para trás. Foi curiosidade, ou talvez extinto heróico que nos levou a correr por calçadas vazias. Virando esquina. Ofegantes no calor. Tropeçando em paralelepípedos até chegarmos à frente duma academia abandonada que falira já a algum tempo...

Protegida pelas vidraças embaçadas, coberta por lonas no interior. Pichada por dentro e fora com símbolos de gangue, questionáveis declarações de amor, e nomes de blasfêmia. Nem houve tanta hesitação, a bravura falou mais alto que trepidações e lá entramos pois estava semi aberta. Ali, o grande salão vazio cheirava a mofo e nos fizera tossir. Os equipamentos haviam sido retirados, deixando apenas suas marcas no chão empoeirado e buracos para parafusos. Tudo era quieto. Lugar sem sinais de vida, além é claro, os dos ocasionais adolescentes bisbilhoteiros, ou mendigos procurando um teto pra dormir...

Porém na parede, colados com cola estavam estranhos e compridos pedacinhos de carne vermelhos, cinzas e pretos... Não sabíamos na hora, mas aqueles eram pênis de ratos. Na mesa da recepção, três copos cheios com sangue vazavam pelas bordas. No banheiro, rodeado por moscas e pelo fedor da morte, leitões espancados, em intermediários estágios de decomposição. Espalhados pelo local, tinham pequenos corações perfurados em espetos, sabe-se lá de que animal... E pro segundo andar, intimidadoras escadas levavam à escuridão. Enquanto encarávamos o breu sussurrante, veio correndo de cima uma das nossas colegas e disparou para fora em desespero. Era a que berrou. Algumas foram acudir, e o resto adentramos entre o pavor...

Ali em cima, gentilmente empurrei a porta rangente e dei de cara com certa cena: ao centro da sala, jazia o futuro pai de Melody, homem sem face, enforcado numa corda pendurada a um gancho no teto. Em sua volta, um verdadeiro cemitério de filhotes... coelhos dissecados, ao chão abatidos, suas tripas arrancadas rodeavam o corpo erguido. Havia também um rastro vermelho que passeava por todo o piso daquele cômodo, e terminava numa gata da cor do crepúsculo, da qual parecia ter vomitado fetos felinos provavelmente retirados de sua boca por braços humanos. E o que dizer dum balde no canto, cheio de passarinhos mortos e depenados; ou do hamster onde, nas órbitas oculares estavam crucifixos enfiados. Não, o mais chocante foi atrás do cadáver pendurado. Deitado como se estivesse a dormir, era o beagle da Casa dos Querubins sem vida, e com os caules de nove tulipas inseridas em seu anus. As outras crianças choraram e até vomitaram, há como culpar? Nem os olhos mais velhos do mundo estariam acostumados a este esgoto visual... mas lá eu parei, entre o cheiro pútrido de sangue e fezes naquele recinto mortal. Abri meus braços, fechei os olhos e deixei-me banhar por aquela atmosfera sensual...

Senhorita PrimaveraWhere stories live. Discover now