Parte 7

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Até o fim do mês naquela cama, ponderei sobre regras estranhas no abrigo, como por exemplo, por que não podíamos ter brinquedos de menino, como carrinhos ou bonecos de ação? Ou por que não podíamos tomar banho todas juntas? A razão, acredito, era eu; e aquilo me deixou deprimida. Enfim, após receber alta, tentei devolver o celular à Otávio mas ele negava: "Pega pra você, titio tem um novo." Dizia. E meus dias eram exaustivos, sem poder gastar minhas energias correndo pela Casa dos Querubins. Todavia, sempre que Marilú aparecia, eu silenciava-me ou saía do ambiente. Ela tentou estabelecer contato, apenas para ser ignorada. Chegou ao ponto em que Otávio interferiu. No quintal, ele veio do meu lado e começou uma conversação: "Por que estás de mal?" Ignorei-o e saí cantando la la la la la... Até que chamou minha atenção para mostrar na sua mão, um grande e colorido pirulito...

"Me dá!" Pulei para pegar.

"Não..." Ele o levantou para fora do meu alcance. "Diga, o que Luiza te fez?" Eu me recusava a contar, mas queria muito aquele doce. Foi então que planejei fingir chamá-lo à minha altura para cochichar no seu ouvido, e quando agachou-se, puxei da sua mão o pirulito; Otávio lutou, é claro, mas não teve forças pra resistir meus puxões, e caiu de joelhos enquanto corri a rir maleficamente com latejos no crânio a cada passo. Tão somente percebi o homem ajoelhado e ofegante, e dei meia volta a checar tamanha estranhez. Estranho também era o fato de oferecer-me tal guloseima, ao invés dos seus pratos clássicos como coxinhas de salsicha, sanduíche de abacaxi, ou hambúrgueres de camarão; dos cozinheiros da Casa, ele era aquele que mais nos mimava. "Nesse mundo, só temos uns aos outros..." Disse Otávio, levantando-se fraco e sentou-se num banco próximo. Ele retirou da cabeça a sua marca registrada, o boné preto, revelando uma careca espantosa. Ele estava pálido. "Luiza fica triste com você esnobando ela, pelo menos conta porque está assim..." Mas eu não contaria, "Certo, mas lembre-se querida, a única coisa infinita nesse mundo, é o amor." E com um beijinho na minha testa como seu último adeus, me deixou ali, parada no sol, confusa com a palavra "infinita" e um pirulito na mão.

Dois dias depois, uma notícia chocante...

Lembro-me que quatro carros nos levaram pelos bairros de Rio das Ostras. "Já chegamos?" Melody perguntava. Dentre o centro por Rodovia Amaral Peixoto, passamos pela praça do Poço das Pedras e adiante. "Já chegamos?" À Jardim Campomar sendo soprados pelo ar da Praia do Abricó, e subindo à Cidade Beira Mar. "Olha um cavalo!" Ela apontou pela janela. Em ruas e ruas imaginei um bonequinho pulando aos telhados das casas e prédios até estrada de terra e não ter mais onde pular. "Já chegamos?" E finalmente estávamos no cemitério, próximo donde ele crescera e sua família residia, digo, Otávio Alencar, que faleceu com câncer de próstata... Ali estavam mãe, irmãos e amigos chorando enquanto um padre os consolava...

Foi o meu primeiro contato com morte; como pode? Aquele senhor sempre tão forte... e na linha tênue entre tudo e nada, um corte! Homem excêntrico, um paterno incopetente. O corpo ali deitado era idêntico àquele cozinheiro talentoso: pele negra, braços musculosos, cabeça careca, rosto sério porém atencioso; mas agora nada mais que um manequim, amontoado de ossos, carne e pele dentro dum caixão. Como o padre ali pregava: você se vê nessas pessoas que se vão. É como encarar a sua própria mortalidade. Entretanto, tais pensamentos poéticos eram incabíveis para menina de cinco anos. Lá, dentre todas as crianças alinhadas, as pré-adolescentes entendiam bem; de nós, foram as únicas que choraram. E também teve Ela. Quando minhas lágrimas estavam prestes a sair, senti um toque no ombro. "Tá com você!" Melody exclamou e correu. Foi em zigue-zague dentre as lápides e se escondeu atrás da maior, inclinou-se pro lado para espiar-me dali de trás, com sua olhadinha perniciosa tramando tantas maldades; adorável, de fato, uma figura lovecraftiana querendo brincar de pique esconde, porém permaneci com a minha educação atendendo o funeral...

Logo passou-se um ano. Chegamos no fundamental, estudávamos numa escola ao bairro de Ouro Verde e lá eu tentava exercitar meus dotes artísticos com variáveis níveis de sucesso... pois ao desenhar, Melody puxava meus cabelos. Ao escrever, ela dava soquinhos. E fazia trancinhas enquanto eu rasgava de decepção... Suas implicâncias eram irritantes, nunca cruéis. Por falar em cruéis, nessa época, eram isso os colegas ao meu redor. Naquela fase onde diziam coisas que seriam desconfortáveis até para as mais adultas bocas; e quando percebiam que estes assuntos me incomodavam, vinham pra cima socando-me com palavrões. Eu punha palmas nos ouvidos e escondia-me embaixo da carteira, como Alyosha Karamazov...

Foi também nesse tempo que Marilú ordenou, "Pense bem, e decida se quer ser menino ou menina." Mas que escolha de Sofia! Pus um boné preto, verde camiseta regata escrita Dinossauros do Futuro no peito, shorts praianos e pedi que me chamassem de "Ele". Eu ficaria conhecido como o Menino da Casa dos Querubins. E tudo até então, é uma adaptação do meu diário daquela época (Traduzido aqui num estilo maduro). Óbvio, quanto mais velho eu era, mais fácil é recordar; porém não existem textos detalhando dos seis para cima, pois a partir daí, preferi escrever ficções e poesias. Então prosseguirei sem nenhum guia a partir de agora, além das cinzas da minha memória... e se desta memória fizestes escansão, todas as tônicas seriam Melody que ao tentar dizer dicionário, dizia dinossauro. Que tinha medo do sol dos Teletubbies. Que usava blush opaco e óculos escuros dentro de casa. Melody que corria nua ao quintal sem ligar, e inocentemente mostrava o dedo para quem passasse no portão. Melody que puxava assunto com todos pela frente, inclusive fantasmas da Casa dos Querubins (Falarei disso em outro momento).

Senhorita PrimaveraWhere stories live. Discover now