6. PROBLEMAS

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Kara zorel

As aulas do dia não me animam. Filosofia e Prática Pedagógica não são as melhores disciplinas do mundo e meu interesse em fazer parte da grande parcela dos estudantes de Letras e me tornar professora é zero. Quero trabalhar com livros, amo livros, mesmo que agora esse sonho esteja um pouquinho mais distante.

Pelo menos hoje, lena não se sentou ao meu lado. Está no fundo da sala, fingindo que está prestando atenção na aula de Filosofia, quando claramente está dividido entre cochilar de forma discreta ou gravar stories para seu exército de fãs ardorosas.

Eu faço anotações sobre tudo, me sentindo um pouco melhor do que antes. Menos estranha e mais como eu era antigamente nas aulas que eu não gostava: anotava tudo para conseguir manter a média porque minha tendência é ficar pensando em qualquer coisa, menos no professor que está aqui na frente.

Tudo bem, Roger não é qualquer professor. Ele é o único gay assumido do corpo docente. Usa roupas rosas bem legais e tênis do Mickey Mouse e é um professor seguro e gentil, mesmo que a disciplina dele este semestre não ajude muito. É claro que alguns assuntos filosóficos são interessantes, tipo a tal modernidade líquida, mas filosofia da educação não me agrada em nada. A sala de aula não é algo que me atrai.

Na hora do intervalo, eu até vou ao banheiro e converso por mensagem com Alex e sinto orgulho de mim mesma ao voltar e estar pronta para assistir a segunda aula mais entediante do mundo todo: Prática Pedagógica.

A professora Valquíria é negra, de longos cabelos cacheados e usa um batom vermelho vibrante, seu corpo é cheio de curvas e sua voz se projeta de uma forma que sequer dá chance para o grupinho das fofocas continuarem a cacarejar lá atrás. Eu não cheguei a ter nenhuma aula com ela esse semestre e quando seus olhos escuros como jabuticabas me localizam, ela sorri de uma forma tranquila, como se estivesse ressaltando que tudo está bem.

Conforme ela fala sobre Paulo Freire, um cara bem legal, responsável por uma educação ensinada com amor, eu vejo que meio que julguei antes e que talvez essa aula não seja a mais entediante do mundo e eu possa absorver coisas interessantes, mesmo não tendo interesse em educação.

O que mais me chama a atenção é a forma como a professora nos faz valorizar a palavra amorosidade e conforme ela exemplifica tudo, eu entendo um pouco mais sobre mim mesma.

Foi com a amorosidade da cat, ao acreditar em mim, que estou aqui hoje e foi com a amorosidade da minha família e melhor amiga que, mesmo eu acreditando ser impossível, estou fazendo as atividades normais do cotidiano.

Quando a aula acaba, saio dela com o coração aquecido do mesmo jeito que em uma sessão de terapia e nem o fato de o ônibus estar um pouco cheio na minha volta para casa me aborrece porque, por sorte, sento-me mais na frente e em um banco de lugar único bem próximo ao cobrador. É como se as coisas começassem a dar certo para mim.

Desço na rua de casa e quase corro até o portão, pronta para contar para todo mundo como meu dia foi mais fácil e como estou com esperança de que tudo fique bem, mas assim que abro a porta da frente, vejo minha família reunida na mesa da sala e ao focar a atenção em papai, percebo que ele está com o braço imobilizado.

O sorriso murcha em meu rosto e meu coração dá um pulo, será que o que eu mais temia aconteceu?

— Oi, Kara . — Mamãe força um sorriso assim que me vê, mas eu percebo que não é um daqueles sorrisos que chegam até os olhos.

— O que aconteceu? — questiono e me aproximo de papai. — Você foi assaltado, não é? -

— Calma, querida — diz minha mãe e me puxa para sentar na cadeira ao seu lado. — Está tudo bem, respire fundo.
Faço o que ela diz, me sentindo completamente ridícula por estar tendo essa reação. -

— Eu só bati o carro, meu amor — papai fala e estica a mão que não está imobilizada, pegando a minha. — Não quisemos contar para você para não a assustar na aula, mas eu estou ótimo. Só fraturei o braço. -

Balanço a cabeça e respiro fundo. Eu tenho que parar de deixar minha imaginação fértil me dominar.

— O que houve? — questiono e olho para meu irmão, percebendo que ele também parece preocupado.

— O pneu furou e eu perdi o controle do carro e acabei batendo em uma árvore, parece até coisa de filme. -
Meu pai sempre gosta de simplificar as coisas fazendo piada, mas consigo perceber que não está muito bem.

— E o carro? — Clark pergunta, recebendo um olhar feio de mamãe como advertência.

— Estragou toda a lateral — meu pai fala com um suspiro, desanimado. — Não sei quando vou poder voltar a trabalhar. -

— Vai ficar tudo bem, querido — minha mãe o assegura, sempre otimista. — Minhas vendas estão ótimas e o Clark me ajuda muito com as entregas.

Meu irmão confirma, mas percebo que o sorriso que dá não é de quem está tão seguro assim. Sei que coisas ruins não têm um tempo certo para acontecer, mas com nossa situação financeira atual, meu pai ficar sem a renda extra é bem preocupante.

Meus pais se esforçam para garantir a mim e ao Clark que está tudo bem e que papai ter se machucado e batido o carro foi apenas algo que não estava no planejamento do mês.

Eu admiro muito a força dos dois porque mamãe ficou o tempo todo durante o jantar nos assegurando de que tudo estava bem e meu pai confirmava cada palavra dela. Não sei se Clark conseguiu acreditar na encenação dos dois, mas eu não.

É por isso que estou me virando de um lado para o outro na cama, sem conseguir parar de pensar que agora as coisas irão ficar ainda mais complicadas. No momento em que me sento na cama, pronta para ir até a cozinha buscar um copo de leite com mel, escuto uma fungada, seguida de um choro.

Vi mamãe chorar poucas vezes na vida, mas ainda assim consigo perceber que é seu choro que ouço. O mais silenciosa possível, saio do quarto e assim que chego ao corredor, percebo que a luz do quarto dos meus pais, do outro lado, está acesa.

Aproximo-me discretamente da porta e vejo que Clark teve a mesma ideia que eu, pois está sentado no chão, usando um daqueles seus pijamas meio infantis com desenhos de carros. Às vezes esqueço que apesar de ser grande, meu irmão só tem quatorze anos.

Ele coloca o dedo indicador em cima dos lábios, um sinal clássico para fazer silêncio. Sento-me do outro lado da porta, ainda ouvindo as fungadas de choro da minha mãe.

— Sinto muito por isso, querida. — Ouço papai dizer, a voz dele também está esquisita, como se estivesse chorando. — Sei que eu ter batido o carro piorou ainda mais nossa situação. -

— Para com isso, zorel. Você não tem culpa pelo pneu ter furado. Ainda bem que não se machucou ainda mais, nem estava com o passageiro. -

— Alura, nosso carro ficou muito estragado. O conserto vai custar praticamente dez mil reais. Não sei o que vamos fazer agora. Eu não consigo emprego nenhum, até desisti de procurar por um na minha área, fora que temos a escola do Clark para pagar e logo a rematrícula da Kara . E se não conseguirmos dar conta? -

— Posso ir à escola do Clark . Ele é um ótimo jogador de futebol, pode ganhar uma bolsa de estudos através do esporte. A diretora é ótima e nossos filhos sempre estudaram lá. A rematrícula da Kara ainda está distante, não quero preocupá-la com isso, ainda mais agora que está conseguindo voltar para a faculdade. -

— Vai dar tudo certo, não é? -

— Claro que vai. - Eles ficam em silêncio e eu e Clark nos olhamos. Sinto um pouco de vergonha do meu irmão. Eu deveria ser mais forte, agir mais como uma irmã mais velha e não ser a filha que não deve ser preocupada porque não anda bem da cabeça.

— Não fica pensando nisso — Clark cochicha, parecendo sem jeito ao tocar as costas da minha mão com as pontas dos dedos. — Você sabe que eles querem o melhor e se preocupam que você possa voltar a ter aquelas crises de pânico de novo. É só por isso que não querem te preocupar. -

— Eu sei — minto e engulo em seco. — Vai dar tudo certo.-
Meu irmão concorda e em silêncio voltamos para nossos quartos. Assim que entro no meu, pego meu notebook, decidida a fazer alguma coisa, qualquer coisa, para ajudar.

Não quero ser a filha que não pode lidar com as preocupações, mas, sim, ser aquela com quem eles sabem que podem contar.

Se não fôssemos OpostasWhere stories live. Discover now