***

— Bonnie.
Alguém acariciava meu rosto gentilmente.
— Bonnie.
Espera... Eu conhecia aquela voz.
Abri os olhos lentamente, vendo meu corpo estendido em uma superfície macia que imaginei ser o meu sofá e sentado ao meu lado, segurando minha mão estava...
— Damon... — falei com uma voz arranhada. Minha garganta ardia — O que está fazendo aqui?
O homem de cabelos negros e olhos azuis como gelo miraram a mim com preocupação.
— Não me disse que estava tão grave assim — censurou.
Fiz um esforço para me sentar e todo o meu corpo doeu. O vampiro percebeu minha careta.
— Você teve uma convulsão.
Respirei fundo, encostando no estofado e apenas olhei em volta. Kai estava sentado em uma das poltronas e olhava para mim todo sério.
— Você contou para ele? — questionei meu amigo.
Damon deu de ombros, ajeitando alguns fios do meu cabelo.
— Dado que isso é culpa dele, claro que tive que contar.
Kai apenas encarou-me sem deixar nada transparecer em sua expressão. Desviei os olhos.
— Eu estou bem — falei, sentando-me e sentindo todos os meus músculos doerem como se eu tivesse corrido uma maratona.
— Você deveria ficar um pouco deitada — Damon disse, ainda preocupado — Precisa descansar.
— Vou descansar quando morrer — rebati, ácida — O que não está muito longe de acontecer.
— Isso não tem graça — censurou, de cara feia.
Coloquei a mão sobre sua bochecha, sorrindo.
— Você ficou tão chato com o passar dos anos, meu amigo.
Ele sorriu zombeteiro.
— E você ficou mais engraçada. Embora, isso seja mérito meu.
Apesar de no início eu odiar Damon Salvatore, não sabia que ele passaria a ser uma das pessoas mais importantes da minha vida. Eu amava meu amigo e faria tudo por ele. Inclusive, arriscar tudo para trazer o amor de sua vida de volta.
— Eu vou ficar bem — falei.
Nós dois sabíamos que aquilo era mentira, mas precisávamos acreditar naquilo. Era nossa única opção.
— Santo Deus, que pieguice — Kai cantarolou, batendo o pé no chão, impaciente.
Damon voltou seus olhos azuis para ele.
— Isso é você ou o ciúmes falando, porco?
Kai bufou.
— Como se vocês tivessem alguma coisa mesmo.
O vampiro mais velho apenas se limitou a erguer uma sobrancelha.
— Você fala com se a Bonnie não fosse uma mulher bonita e desejável — provocou — E devo salientar, que se não fosse por Elena com toda a certeza eu estaria beijando o chão que essa garota pisa. Coisa que você deveria ter feito há oito anos atrás, em vez de bancar o garotinho revoltado e tê-la machucado de todas as formas possíveis — ele lançou um olhar de desdém para o herege — Mas quem amaria alguém como você? Até mesmo a sua família e o seu clã o rejeitaram. Bonnie é realmente a criatura mais adorável do mundo por ao menos ter lhe dado filhos, coisa que um verme como você não merece.
Uau. Até mesmo eu fiquei sem palavras.
Kai ficou tão irritado com aquelas declarações que não conseguia achar uma resposta adequada. Seu rosto ficou púrpura de ódio.
— Nossa — eu ri — Você conseguiu calar a boca dele mesmo.
Kai ficou de pé num átimo de segundo, pronto para atacar Damon. E mesmo que eu estivesse fraca e cansada, de um salto, já estava diante dele, bloqueando sua passagem.
— Sai da minha frente, Bonnie — sibilou, fulminando Damon por sobre meu ombro.
— Ou o quê? — ergui uma sobrancelha.
Vi seu maxilar contraindo fortemente e seus olhos cinzentos pousaram nos meus.
— Não se esqueça que você está na minha casa — usei o mesmo tom que ele — Aqui entra quem eu quiser e quem manda sou eu. Se não estiver satisfeito com isso, ótimo. Você está convidado a se retirar — cutuquei seu peito com o indicador — Mas, em hipótese alguma, vou deixar que você machuque Damon mais do que já o feriu durante todo esse tempo.
Kai apenas limitou-se a olhar para mim com o semblante ardendo de raiva, porém, não disse nada. Apenas ergueu as mãos e deu alguns passos para trás, voltando a sentar-se na mesma poltrona que ocupava a poucos segundos.
— Tá legal — deu de ombros — Defenda o seu amiguinho que é tão assassino quanto eu.
— Own — fez Damon, o provocando, esparramado no sofá — Você vai chorar?
Lancei um olhar de aviso para o outro vampiro.
— Ok — disse ele rapidamente — Já calei a boca.
Damon ainda tentou me convencer dos benefícios de uma soneca para recuperar as energias, mas eu tinha várias coisas para resolver e o dia ainda não estava nem mesmo na metade. Isso sem citar o fato de que agora, Kai, sabia de minha fraqueza. Uma vozinha mal educada xingou-me de todos os nomes péssimos por causa de meu descuido na frente dele. Após meu melhor amigo ir embora, — muito relutantemente e dando olhares desconfiados na direção do pai de minhas filhas — voltei-me para um Kai nada satisfeito.
Ele ainda continuava sentado na mesma poltrona quando voltei para a sala de estar. Embora estivesse com uma expressão sisuda, também havia um ar reflexivo em suas feições.
— Quando pretendia me contar da sua doença? — questionou, erguendo os olhos acusadores para mim.
Sentei-me de frente para ele de pernas cruzadas e joguei os cabelos sobre os ombros. Suspirei calmamente.
— Nunca.
— Como? — Kai franziu o cenho.
— Então pretendia me matar para ficar com a Amy e, em seguida, morreria e as meninas ficariam sozinhas?
Ergui uma sobrancelha.
— Eu não pretendo morrer, Kai. E se, isso, acontecesse por qualquer motivo, a guarda das duas ficaria sob a tutela de Caroline e Stefan.
Ele riu sem humor algum.
— Claro. A esposinha troféu e o estripador. Que ótimos exemplos de pais eles seriam.
— Até alguns anos atrás você matava porque estava entediado — citei — E acredito que meus amigos seriam ótimos tutores. Ao contrário de nós dois juntos.
Ele semicerrou os olhos.
— O que quer dizer com isso?
— Você — gesticulei — Com esse papo de fugirmos para salvar nossas filhas. O que acha que aconteceria se ficássemos juntos?
— Eu cuidaria de você e das meninas... — insistiu.
— Não. Você acharia uma forma de me subjugar e iria manipular nossas filhas para acreditar em tudo o que você diz — declarei, irritada com sua hipocrisia — Eu seria sua prisioneira novamente.
— Você sabe que não seria nada assim — disse, na defensiva.
— É mesmo? E se eu me interessasse por outro homem que não fosse você? O mataria como fez com Renly?
Ele sacudiu a cabeça e negou, fechando os olhos com força.
— Isso é diferente. Você me enganou e eu estava com a minha humanidade desligada.
— Essas são suas desculpas? — eu ri — A humanidade desligada? Você nunca foi humano nem mesmo antes de ser vampiro, Kai. Admita. Você queria fazer aquilo. E não vamos nem mesmo entrar no mérito da enganação. Eu não enganei você. Não tínhamos nada. Você criou uma relação na sua mente doentia. Eu queria ser livre para amar quem quisesse, mas não aceitava que o objeto da minha afeição não fosse você. Você, Malachai Parker, não passa da porra de um egoísta.
O vampiro apenas ficou olhando para mim de um modo estranho. Toda a sua raiva desaparecida.
— Sabe, eu demorei um pouco para entender os sentimentos das pessoas quando adquiri a empatia de Luke — explicou — Eu não sabia diferenciar certas emoções de outras, porque eu não as possuía. Era uma coisa que me deixava frustrado quando era mais novo e por isso tive que aprender a observar as pessoas e os padrões que elas demonstravam em determinadas situações. Porém, o sentimento de medo sempre foi minha especialidade. Era uma coisa que me fascinava. Então… não tenha medo, Bonnie.
Franzi o cenho.
— Do que está falando?
— Você está assustada, porque pode morrer a qualquer instante e deixar as meninas sem você — explicou, ainda calmo — Não precisa se preocupar. Vai dar tudo certo.
Semicerrei os olhos.
— Não venha com essa ladainha de me confortar, Kai — atirei, irritada com sua condescendência — Eu não preciso da porcaria da sua pena. E além do mais que tudo isso é culpa sua.
— Eu sei — assentiu com a cabeça — Eu não tinha noção do estrago que podia fazer na sua vida por causa do meu egoísmo — ele sorriu, amargo — Na verdade, eu nunca me importei de fato. E peço desculpas, mesmo que isso não resolva nada agora.
Era a primeira vez que ele se desculpava por algo sério de fato. Eu devia estar inspirando uma pena terrível nele.
— Eu não vou morrer — avisei, determinada — E você não vai ficar com as minhas filhas.
Ele sorriu abertamente para mim.
— Isso mesmo, seja a Bennett teimosa que você é e viva pela eternidade para brigarmos por nossas filhas.
Revirei os olhos e experimentei ficar de pé. Apesar do corpo dolorido eu estava me sentindo bem. Kai ficou observando todo o processo atentamente.
— Você veio por causa dos grimórios, não? — falei, indo até uma das enormes prateleiras no canto da sala.
— Sim — disse, se juntando a mim — Eu preciso dos melhores que você tem. De preferência aqueles com feitiços tão complexos e esquisitos que você nem sabe direito para que servem.
Pensei por um segundo, procurando pelas especificações dele e encontrei os tais livros. Separei-os em pequenas pilhas e em seguida os entreguei ao vampiro com certa brusquidão.
— Pronto — disse eu, cruzando os braços sobre o peito — Aqui estão meus grimórios — encarei-o, séria — Cuide bem deles.
— Como se fosse a minha filha — declarou, solenemente. E dado o quanto ele parecia amar Amy, eu podia tomar aquilo como uma promessa válida.
E isso chamou minha atenção.
— Como ela está?
Kai mudou os livros enormes de mão como se não pesasse nada.
— Ela está mais cansada que o normal — disse, preocupado — Não dorme muito bem à noite. E vive falando de você e a Eve sempre que pode. Ela está louca para vê-las novamente.
Franzi o cenho.
— Você acha que é uma boa ideia? Já que sabemos que não estamos seguros com os Irmãos presentes.
Kai deu de ombros.
— Eles já sabem que estamos aqui, mas por causa do feitiço que existe na pedra, eles não sabem dizer com exatidão onde em Mystic Falls ela está. Então, não vejo problemas com o fato de você e Eve virem nos visitar.
Fiquei o encarando, vendo a expectativa em seu olhar. Era incrível como ele ficava parecido com nossas filhas fazendo aquilo. Eu nunca havia reparado em quão cativante Kai era.
— Acho que podemos passar na sua casa mais tarde quando Eve sair da escola — disse eu, cautelosa — Nós duas também estamos com saudade da Amy.
E aquele sorriso adorável voltou.
— Para de ficar sorrindo assim — soltei, irracionalmente irritada — Fica parecendo um idiota.
Kai apenas revirou os olhos azuis.
— Você tirou o dia para me humilhar, não é?
Apenas ergui uma sobrancelha e fiz cara de poucos amigos.
— Ok — ele ergueu uma das mãos em sinal de rendição — Estou de saída.
O segui até a porta da frente e quando estava quase colocando um pé para fora da casa, Kai girou nos calcanhares e ficou de frente para mim. Sua proximidade súbita foi algo que me tirou o fôlego.
Olhei para cima, para seu rosto, tentando disfarçar o quão deslocada fiquei com aquele ato.
— O que é, Kai? — suspirei longamente.
— Você vai vir mesmo, não? — questionou, seus olhos seguindo os meus de maneira persistente.
— Eu disse que iria e...
— ... e você não quebra promessas — completou ele, sério — Eu sei.
Continuei o fitando daquela maneira apenas nossa. Em uma espécie de luta silenciosa.
— Se eu sonhar que a Eve está correndo algum perigo na sua casa — avisei — Eu juro que a tiro de lá na mesma hora.
Kai apenas bufou, enfadado.
— Eu estou sendo caçado por esses caras há anos. Acha mesmo que não criei armadilhas o suficiente caso eles tenham a audácia de invadir minha casa?
Eu estremecia só de imaginar que feitiços mirabolantes e bizarros de proteção ele pode ter colocado em volta daquela fábrica velha e decrépita. Pelo menos, em seus métodos malucos para proteger nossas filhas, eu podia confiar. Ou pensava que podia.
O vi se afastar seguindo seu caminho, embora, não fizesse ideia de como ele iria a pé. Eu que não perderia meu tempo dando carona para aquele babaca egocêntrico. Fechei a porta logo em seguida e tratei de ir até o porão para pegar algumas bolsas de sangue. Percebi ao longo do tempo que eu apenas melhorava de fato quando me alimentava logo após aqueles ataques.
Depois de estar devidamente alimentada e um pouco melhor, voltei para o escritório e trabalhei durante boa parte daquela manhã e início de tarde. E pensei que estava tudo bem, até meu amigo e sócio bater à porta do escritório.
— Entre — exclamei, digitando rapidamente no notebook, pois precisava terminar aquela papelada ainda naquele dia.
— Está ocupada? — perguntou Tyler, belamente vestido com calças escuras e uma camisa branca e simples de botões que o deixavam ao mesmo tempo bonito e elegante.
— Na verdade, estou um pouco — fiz uma careta — Mas já que está aqui pode me ajudar com...
— O Kai voltou, Bonnie? — questionou ele, seus olhos negros me perfurando como adagas.
Engoli em seco, parando de digitar e dei total atenção à Tyler.
— Sim — assenti, rígida.
Tyler apenas encarou-me por longos segundos, nada satisfeito com minha resposta.
— E pelo que soube, ele trouxe a Amy junto com ele também, não é?
Recostei-me contra a cadeira e fiquei na defensiva de imediato.
— Sim. E eu estou muito feliz que a minha filha esteja viva.
O lobo cruzou os braços fortemente contra o peito.
— Você não acha muito conveniente para ele que do nada, a filha de vocês tenha voltado dos mortos?
— O que quer dizer com isso? — franzi o cenho.
— Tem certeza de que é a sua filha, Bonnie? — lançou.
— O que? Como poderia não ser ela? Eu mesma a vi... — me apressei.
— Kai se provou muito bom em criar feitiços que nos enganaram mais de uma vez. Não seria uma surpresa se essa menina que se diz sua filha, ser mais uma dessas ilusões ou quem sabe até mesmo uma impostora.
Senti meus dentes rangendo uns contra os outros dentro da boca. Era uma característica irritante em ser vampira: as emoções eram sempre mais afloradas que as de uma pessoa normal.
— Você não a viu. Eu sou a mãe dela. Saberia se houvesse algo errado com ela.
Tyler riu, mas não havia humor algum naquele som.
— Você passou oito anos longe dela. Não sabe como ela deveria ser de fato, Bonnie — seus olhos negros ficaram afiados — E aparentemente, Kai está se aproveitando dessa vulnerabilidade mais uma vez. Você não se cansa de ser enganada por ele?
Tive que respirar muito — e muito mesmo — fundo para não responder de maneira ríspida meu amigo de colegial e sócio.
— Eu sei que você o odeia com todas as forças, Tyler. Mas, minhas filhas não tem culpa pelos pecados do pai delas — ele abriu a boca para me interromper, mas não deixei — E na verdade, você nunca soube separar as coisas, porque até hoje não consegue olhar nos olhos da Eve por causa do seu ressentimento em relação ao Kai.
Aquelas palavras pareceram acertá-lo em cheio. E de uma forma bem dolorosa.
— Eu não odeio sua filha.
— Mas não gosta do fato de ela se parecer com Kai.
Ele passou a mão grande entre os cabelos pretos e curtos, suspirando pesadamente em agonia. E quando voltou a olhar para mim, havia dor em seu semblante.
— Ela pode até se parecer com ele, mas os olhos da Eve são dela.
— Dela? — franzi o cenho.
— Olívia — respondeu com o maxilar travado e os olhos marejados — Eu não consigo olhar para Eve, porque ela tem os mesmos olhos da Liv. Você nunca reparou?
Sacudi a cabeça lentamente de um lado para o outro, agora sem palavras.
— As vezes eu acho que estou ficando maluco, pois quando olho para sua filha eu vejo traços da Liv nela — disse, exasperado — Talvez seja porque elas são da mesma família. Tem alguma coisa nesses Parker que nos faz ficar obcecados. É como uma droga.
Assenti, pois sabia muito muito do que ele estava falando. Mesmo não admitindo, tinha realmente algo em Kai que me atraia de volta para ele, não importa o que ele fizesse contra mim. Era... desesperador.
— Eu entendo você — assenti com a cabeça.
Sua expressão voltou a ser dura.
— Por isso eu preciso dizer que estar perto dele é perigoso, Bonnie. Você, mais do que ninguém, sabe o tamanho do estrago que ele fez na vida de todos, inclusive na sua.
Infelizmente, Tyler ficou mais responsável e coerente com o passar dos anos. Então, eu não podia ignorar seu conselho como se fosse idiotice, porque a única idiota ali era eu.
— Eu não esqueço disso um dia sequer, Tyler — falei — Mas estou presa à ele e, por enquanto, não consigo achar uma saída. Não uma que não vá magoar a Amy.
A menção do nome da menina, ele apenas suspirou pacientemente.
— Você é esperta o suficiente para saber onde está se metendo. Mas me deixe dizer uma coisa: se Kai cruzar meu caminho, eu mesmo o mato.
Juntei as mãos sobre a superfície da escrivaninha, olhando-o com seriedade.
— Isso vai magoar minha filha.
— Eu sinto muito, Bonnie — disse isso e se retirou sem dizer mais nada.
Eu apenas fechei os olhos e soltei o ar com força, pois não conseguia pensar em mais nada naquele momento ou corria o risco de ter um surto.
Horas mais tarde, saí do trabalho e busquei Eve na escola. Ao chegarmos em casa, perguntei à ela se gostaria de jantar na casa de seu pai. Apesar de cautelosa com suas respostas, temendo me magoar, Eve parecia muito feliz com o convite.
— Foi ele quem nos convidou, mamãe? — perguntou, desconfiada — Você não o obrigou a fazer isso?
Eu apenas ri de seu ar taciturno.
— Uma coisa que você vai aprender sobre seu pai, querida, é que ninguém o obriga a fazer nada que ele não queira.
Eve pensou sobre isso por um segundo e um brilho feliz surgiu em seu semblante.
— Ele nos convidou mesmo!
Mesmo que Kai não merecesse, eu estava feliz pelo fato de Eve estar tão animada em vê-lo. Privá-la disse tipo de relação não era saudável para o seu crescimento. Embora eu temesse que sua proximidade com Kai pudesse ser muito mais nociva para sua criação. Entretanto, tentei ignorar aquelas vozes que gritavam o quão assustadora era aquela situação. Eu precisava averiguar com meus próprios sentidos se ele realmente queria construir uma relação com nossa filha.
A noite caiu rapidamente e após terminar de arrumar Eve para o jantar, fui eu mesma para o meu quarto escolher algo para vestir. Tomei um banho e quando estava prestes a pegar a primeira coisa que vi no closet vi Eve parada na entrada do cômodo de braços cruzados.
— Esse não — disse apenas.
Parei o movimento em direção ao vestido preto e simples que estava na arara de roupas. Girei nos calcanhares, ainda envolta pelo roupão e encarei a menina de olhos perspicazes.
— Esse vestido é de trabalhar, mamãe — ela fez uma careta, adentrando o quarto e ela mesma escolheu um vestido dentro do closet. Ela o pegou e estendeu diante de si e rodopiou na minha frente, fazendo o tecido de seda acobreado reluzir sob a luz do abajur — Esse é muito mais bonito. Combina com a sua pele.
Coloquei as mãos no quadris sorrindo.
— O que está pretendendo com isso, mocinha?
— Nada, mamãe — deu de ombros, fingida — Apenas achei que já que vamos visitar a casa do Kai nós devemos ir lindas como princesas.
— Você já viu como ele se veste? — perguntei — Coturnos e jeans para todo tipo de ocasião. Não acho que eu deva gastar roupa e maquiagem com o seu pai.
Ela ergueu uma sobrancelha negra.
— Quem disse que você precisa de maquiagem?
Eu tive que sorrir mais ainda com aquele elogio. Não tinha como não amar Eve.
— Ok. Você venceu — ergui as mãos em sinal de rendição.
Ela deu um sorriso satisfeito e me entregou o vestido. Quando estava prestes a sair do quarto, segurei sua mãozinha e olhei para o seu rosto delicado com atenção.
— O que foi, mamãe? — perguntou, confusa com a minha expressão.
— Puxa — sorri de maneira triste — Ele tem razão. Você tem os olhos dela.
Devia ser terrível para Tyler não conseguir se desprender do passado, pois Eve estava ali todos os dias para lembrá-lo do que ele havia amado e perdido.
— Os olhos de quem? — Eve perguntou.
Apenas acariciei seus cabelos negros e lhe dei um beijo na bochecha.
— Ninguém, meu amor — murmurei — Agora vá pegar suas coisas, enquanto, eu termino de me vestir.
Eve assentiu com a cabeça e foi para seu quarto pegar todas as coisas que queria mostrar para Amy. Com isto, terminei de me aprontar e quando me olhei no espelho, achei que minha filha realmente tinha bom gosto. O vestido cor de bronze descia acetinado por minhas curvas até a metade das coxas. Ajeitei as alças finas nos ombros e avaliei o salto alto que eu havia escolhido.
— Mamãe — disse Eve surgindo do nada no quarto, segurando sua mochila de unicórnio — Você tá uma gata!
— Não mais que você, meu amor — falei, apontando para o vestido vermelho e rodado que ela usava. Amy rodopiou pelo quarto, se exibindo.
E sim, ela tinha o ego do pai. Era inegável e fofo quando se tratava do meu lindo bebê.
Após terminar de me aprontar, fomos até o carro e seguimos em direção à antiga fábrica abandonada. E durante todo o trajeto não consegui parar de olhar para todos os lados preocupada. E se aquela irmandade estranha estivesse à espreita, tentando atacar a mim e a minha filha? Eles a deixariam viva se me pegassem? Ou acabariam com ela pelo fato de ser meia vampira?
Apertei o volante com mais força que o necessário e olhei pelo espelho retrovisor, vendo a garotinha sentada no banco de trás cantarolando uma canção e olhando pela janela que dava para as ruas escuras. Eu amava tanto aquela menina. Ela era minha vida, tudo o que restou de mim depois que Kai me destroçou e após a morte de Amy. Ela havia me curado da minha dor em tantos sentidos que eu, apenas, poderia expressar gratidão por toda sua vida.
Eu viveria por ela. E mataria por ela.
O caminho foi se tornando cada vez mais escuro e tortuoso e pude ver Eve pendurada no vidro do carro, tentando observar tudo ao seu redor, embora estivesse escuro demais. Estacionei em frente a fábrica e desci do carro, indo desafivelar o cinto da menina.
— Mamãe — ela disse, enquanto descia do carro e olhou para a fábrica velha e caindo aos pedaços com uma careta — A Amy mora aqui?
— Sim — assenti — E ela vai ficar muito feliz em ver você.
A apreensão sumiu de seu rostinho ao ouvir o nome da irmã. Ela enlaçou seus dedos pequenos em minha mão estendida e seguimos em direção às portas enferrujadas.
Dessa vez foi muito mais fácil passar por elas, já que eu tinha um convite da "dona" do local, Soledad. Fazia sentido Kai viver com uma humana, pois ela era a única que poderia consentir ou não a entrada de outro vampiro.
Eu já estava pensando em uma desculpa para amenizar a aparência daquele lugar esquecido por Deus quando me surpreendi completamente.
O interior da fábrica, antes escuro e empoeirado, estava iluminado em todos os cantos por luzes e pisca-piscas douradas e o piso, antes de concreto cru, sujo e rachado, estava coberto por grama e flores de todos os tipos. Até mesmo o maquinário antigo estava repleto de trepadeiras e flores silvestres de todas as cores.
Eve olhava embasbacada para o jardim noturno com os olhos brilhando de admiração. Eu não estava diferente.
— Parece um conto de fadas, mamãe — sussurrou, ainda admirada.
— Sim, meu amor — sacudi a cabeça, ainda olhando em volta.
Ficamos tão absortas na beleza daquele lugar etéreo que não ouvimos a aproximação de alguém. Quando me virei, Kai já estava ao meu lado, observando a mim e Eve silenciosamente. Claramente, aquilo me causou um sobressalto dos infernos.
— Você tem que parar de chegar assim — coloquei a mão no peito, ofegante.
Ele abriu aquele detestável sorriso adorável.
— Oi, Bonnie. Vocês estão lindas.
Seus olhos fugiram rapidamente para Eve que o encarava de cima a baixo com uma sobrancelha erguida.
— Mamãe tinha razão sobre a sua maneira de se vestir.
Kai apenas olhou para a camisa branca que vestia, os jeans desbotados e os coturnos marrons.
— O que tem de errado com a forma que eu me visto? — ele ergueu os olhos azuis para mim — O que disse para ela?
Olhei para Eve e apenas rimos de maneira cúmplice. Kai não pareceu gostar muito daquela interação que o deixava de fora, mas voltou a sorrir para nossa filha.
— O que achou do jardim, Eve?
Mesmo que ela fosse durona e um pouco orgulhosa— admito, que a criação ajudou bastante nisso —, ela abriu um sorriso lindo.
— Eu adorei, Kai — ela disse — Foi você quem fez isso?
— Na verdade, foi ideia da sua irmã — ele deu de ombros — Ela tem mais sensibilidade para esse tipo de coisa. E eu achei a ideia incrível e montei apenas o que ela desejava.
— Você construiu um jardim inteiro da noite para o dia, apenas porque era um desejo da Amy? — perguntei, chocada com quanto tempo ele gastou naquela organização, pois a fábrica era enorme.
Ele deu de ombros mais uma vez.
— Eu realizo todos os sonhos da minha princesa — disse com um calor na voz — O que estiver ao meu alcance, claro.
Olhei em volta mais uma vez. Estava realmente tudo lindo como um sonho.
— Então seu alcance não tem limites.
Ele não disse nada, apenas fitou a mim daquela maneira silenciosa e avaliava que também era algo de Eve.
— Onde está a Amy? — murmurou a própria, cortando nossa interação silenciosa — Ela não vai ver o jardim?
— Ela brincou nele até se cansar — Kai explicou — Eu disse à ela para ficar dentro de casa até vocês chegarem. Está um pouco frio aqui fora.
Eu estava acostumada com um Kai rancoroso, frio e cruel. Não com aquela mãe super protetora que ele havia se tornado. Era mórbido, engraçado e um pouco — um pouquinho de nada — fofo.
— E eu sei que você está fazendo uma piada sobre mães, Bonnie — disse ele, atravessando-me com o olhar.
— Eu não disse nada — eu estava torcendo os lábios para não rir da cara dele.
— Mas pensou — resmungou — Seu rosto é um livro aberto. Dá pra notar as piadinhas só de olhar para essas sobrancelhas arqueadas.
Tentei ficar o mais séria possível e Kai nos guiou para o segundo andar. Enquanto, subíamos as escadas que tinham trepadeiras e flores no corrimão, Kai olhou por sobre o ombro para Eve.
— E por que não está me chamando de pai? — questionou — Pensei que já tínhamos passado dessa fase.
Eu estava prestes a dar uma resposta mordaz quando minha filha se adiantou:
— Eu não estou vendo esforço da sua parte, então, não vejo porque agradá-lo.
Kai apenas bufou.
— Eu te dou dez dólares.
— Cem — ela rebateu subindo ao meu lado.
— Cinquenta — ele negociou.
— Meu tio Damon disse que você é rico, então, não me subestime — lançou de volta — E agora eu quero duzentos dólares.
Chegamos ao alto da escada e aqueles dois ficaram se medindo como dois oponentes. Foi a cena mais estranha e intrigante de todas.
— Cento e cinquenta — Kai semicerrou os olhos com os braços musculosos cruzados sobre o peito.
— Agora vão ser duzentos e cinquenta pela sua insolência — respondeu a menina, imitando sua postura.
Kai suspirou,  revirando os olhos.
— Ok. Eu te dou duzentos.
— Agora eu quero trezentos, porque você me aborreceu — ela ergueu uma sobrancelha.
Kai olhou para mim em um pedido de socorro silencioso. Eu apenas sorri e acariciei os ombros de Eve. Se ele achava que seria fácil, estava muito enganado.
— Então vai ser assim? — ele colocou as mãos nos quadris e sorriu diabolicamente — Ok. Te dou dois mil dólares para me chamar de pai sem reclamar — Eve abriu a boca, mas ele apenas ergueu um dedo no ar — E nada de "papaizinho" ou alguma forma depreciativa da palavra pai. Deus sabe, o quão você é parecida com a sua mãe e pode transformar uma sílaba em algo irônico.
Apesar de tentar parecer descolada, Eve sabia que tinha mais a ganhar naquele acordo.
— Dois mil e trezentos — ela forçou.
— Dois mil dólares e não falamos mais nisso — Kai deu seu veredito — É minha proposta final. Pegar ou largar.
A menina o perfurou com os olhos azuis e Kai pareceu imune. Ela detestava perder em qualquer coisa, mesmo que, aparentemente, tenha ganhado. Eve gostava do prazer do jogo e subjugar o oponente. Deus era testemunha das brigas que tinha com Damon porque ele roubava em todos os jogos.
Ela suspirou e apenas estendeu a mãozinha para Kai, que a segurou e sacudiu gentilmente. Pelo sorriso dele, dava para perceber o quão satisfeito estava com a situação.
— Foi um prazer fazer negócios com você, pai — ela disse, firme.
— Digo o mesmo, filha — concordou, mais feliz que bandido em assalto.
— Meus Deus — falei, chocada — Vocês são absurdos.
— Mamãe — ela agarrou minha cintura, feliz — Agora eu tenho dois mil dólares!
— E o que vai fazer com isso tudo, querida? — questionei, fuzilando seu pai com os olhos, este que deu de ombros sorrindo.
— Eu vou comprar presentes para você, a Amy, o tio Damon, tio Stefan, a tia Caroline, o tio Matt, o tio Tyler, a tia Gen — foi listando — o tio Rick, minhas primas, para o Raizo e se sobrar alguma coisa também compro um presente para o papai.
— Você tem tios demais — Kai resmungou, não gostando nada de ficar abaixo do cachorro.
— Ah, e também vou guardar o presente da tia Elena! — Eve disse subitamente — Vamos vocês dois, eu quero ver a Amy.
E seguiu sozinha pelo corredor iluminado com dois vampiros mudos em seu encalço.
— Você contou sobre a Elena para ela? — Kai cochichou, agora sério.
— Ela me perguntava sempre quem era a moça bonita das fotos junto comigo e Caroline — expliquei, ficando sombria — Não é como se eu fosse apagar Elena de nossas vidas. Mas não se preocupe — falei com desdém — Eu disse à ela que Elena foi dormir e que quando fosse adulta as duas iriam se conhecer pessoalmente. Para Eve, Elena é como uma princesa. A Bela Adormecida. E nessa história — mirei seus olhos com frieza — não tem nenhum bruxo malvado.
Kai apenas ficou mudo e seguiu por todo o corredor em silêncio. Ele abriu a porta para nós e Eve correu para dentro da sala bem decorada e adornada.
Meu coração se agitou quando vi a garotinha Idêntica à Eve com exceção dos cabelos na altura do queixo. Amy usava uma blusa branca com botões e uma saia xadrez amarela e preta que a deixava mais vivaz. Ela ficou de pé com um movimento rápido e ofegou por um segundo, antes de Eve a engolir em um abraço apertado.
— Eu senti sua falta, Amy — e disse, sorrindo contra o ombro da irmã mais franzina.
— Também senti sua falta, Eve — confidenciou a abraçando contra si.
Foi a cena mais linda que já vi em toda a minha vida e pensei que fosse chorar ali mesmo, quando ouvi um soluço alto e estridente. E vi, com espanto, uma Soledad, usando um vestido bege, simples e elegante, atravessando a sala aos prantos. As meninas se separaram para observar a cena incomum.
— Abuelita — Amy sorriu — Essa é a Eve. Minha irmã.
— ¡Dios mio! — Ela chorava copiosamente — Mira solo usted, chica — disse, acariciando o rosto de Eve com todo o carinho do mundo — Ella se parece a su padre.
A menina franziu as sobrancelhas.
— O que ela disse?
— Disse que você se parece com o papai — Amy traduziu.
— É a sua vovó? — Eve perguntou com os olhos brilhando — A vovó Sol?
Amy sacudiu a cabeça em uma afirmativa.
— Oi, vovó Sol — ela cumprimentou — A Amy disse que você é muito legal.
Soledad quase se desfaz de tanto amor.
— Sol, pelo amor de Deus — Kai atravessou a sala — Você está assustando ela. Vai com calma — e puxou um lenço branco perfeitamente dobrado do bolso da camisa e o ofereceu a Sol que o aceitou prontamente.
Eu estava tão feliz de ver minhas filhas reunidas, que não tive coragem de separá-las e fiquei apenas parada observando. Embora, isso não tenha durado muito, pois Amy acabou me vendo e correu com o tanque de oxigênio em seu encalço na minha direção.
— Bonnie! — ela exclamou, abraçando minha cintura.
Acariciei seus cabelos escuros e sem resistir a peguei no colo e a abracei.
— Olá, florzinha — sussurrei — Você está bem?
— Sim — e assentiu, corada de felicidade — Você e a Eve gostaram do jardim?
— Nós amamos — sorri abertamente — Você é muito criativa. Consegue deixar coisas simples mais bonitas apenas com a imaginação.
Ela corou mais ainda com o elogio.
— O papai quem fez todo o trabalho — explicou.
— Mas quem desenhou o jardim foi você — Kai disse, sorrindo para ela — Não jogue todo o crédito para cima de mim. Deixe sua mãe saber que teremos uma paisagista na família.
Amy ficou tão vermelha que não conseguia olhar para o rosto de nenhum dos presentes.
— Você está deixando ela constrangida, Kai — falei, escondendo seu rostinho rubro em meu abraço.
— Não há modéstia entre os Parker e ela sabe disso — murmurou, todo soberbo.
— Mas há na família Bennett — rebati — E tento lembrar a Eve todos os dias de onde viemos. Deveria ensinar o mesmo para Amy.
— E deixá-la mais tímida do que já é? — Kai abanou o ar — Jamais. A Amy foi feita para se destacar.
— Papai — ela resmungou, fazendo um beicinho.
— E quanto a mim? — Eve o encarou de braços cruzados.
— Você tem tanto poder de persuasão que arrancou dois mil do seu pai — disse ele e havia um quê de orgulho em sua voz — Está no caminho certo.
— Tenho sérias dúvidas quanto a isso — falei, ríspida.
— Qual é, BonBon... É um presente — murmurou, olhando para Eve da mesma forma que olhava para Amy — Eu não pude dar nada à ela em seu aniversário.
— É, mamãe — Eve concordou — É só um presente. Aposto que a Amy ganha coisas mais legais que isso.
Acariciei os cabelos da pequena menina em meus braços.
— Eu espero que não — disse eu, sorrindo para ela.
Nós continuaríamos discutindo a criação de nossas filhas infinitamente se Soledad não tivesse arrastado a todos para uma mesa de jantar enorme, posta entre a cozinha e sala de estar em conceito aberto. Tinha tanta comida e guloseimas que me senti culpada por ter tanto e outros tão pouco.
As gêmeas ficaram tão entretidas em seu mundo, que não prestaram a mínima atenção em mim ou em Kai. E nem devo mencionar a discussão entre o vampiro e a governanta, pelo fato da mesma não querer se sentar à mesa conosco. Foi uma chuva de troca de farpas em espanhol e no fim, Kai ameaçou levar Eve de volta para casa se ela não fizesse o que ele estava pedindo.
Pelo tom de Soledad ao se sentar à mesa, ela não estava elogiando Kai na sua língua materna.
Foi estranho ver a interação entre os três naquele jantar atípico. Sol tentava fazer Amy comer legumes e Kai defendia a menina, empurrando um pedaço de pudim para ela sorrateiramente. Coisa que não deixou a governanta nada feliz.
Foi estranho constatar que eles eram uma família. Estranha, disfuncional e mórbida, mas eles eram.
Eve também avaliava aqueles três barulhentos que discutiam e resmungavam sobre coisas corriqueiras do dia a dia. Subitamente, ela segurou minha mão sobre a mesa e apertou seus dedinhos nos meus. Sorri para ela e acariciei sua bochecha.
— A nossa família é pequena — sussurrei, tocando a pontinha do seu nariz com o indicador e isso a fez rir — Mas temos muitos amigos e nossas ancestrais sempre vão estar conosco. É um tipo de amor que está acima de quantidade.
— Eu sei — ela sorriu ternamente — Eu te amo, mamãe.
— Eu te amo, meu amor — retribui o gesto.
Quando olhamos para os três, todos estavam em silêncio, olhando para mim e Eve. Amy parecia um pouco triste e desejosa com a cena. Ela também queria ter aquilo.
Então, inclinei-me sobre a mesa e peguei sua mão levemente fria.
— Eu também amo você, florzinha — eu disse à ela.
Seus olhos se encheram de lágrimas e ela sorriu abertamente.
— Ei — Kai a abraçou pelos ombros — Não seja uma molenga — ele riu — Está parecendo a sua mãe.
Amy apenas sacudiu a cabeça em afirmativa, enquanto tentava secar as lágrimas que não paravam de cair.
— Ela é muito sensível a tudo — Kai explicou, secando seu rostinho com as pontas dos dedos — Uma vez ela chorou porque eu retirei um vespeiro da varanda de casa. Disse que as vespas ficariam sem ter onde morar e tristes por causa disso.
Ele parecia encantado com os sentimentos dela.
Amy apenas escondeu-se no braço de seu pai, evitando contato visual com todos. Isso me fez sorrir, porque me lembrava a mim mesma na sua idade. E isso me fez ter o mesmo pensamento recorrente de que Eve talvez fosse uma representação da criança que Kai fora anos atrás.
Tratei de mandar esses pensamentos vacilantes para o lugar que eles deveriam habitar: o fundo de minha mente, onde eu guardava juntamente toda uma enxurrada de traumas que aquele homem havia criado em mim.
Depois que as meninas terminaram suas refeições, Soledad lhes deu permissão para irem ao quarto de Amy para brincar. A própria Sol retirou-se e foi paparicar as meninas com toda a certeza.
Então, ficamos apenas eu e Kai sentados à mesa de jantar, já vazia e organizada. O próprio tratou de se levantar e servir duas taças de vinho.
Não posso dizer que confiava nele, pois aproximei a taça do nariz e farejei em busca de alguma substância estranha que pudesse me apagar e me levar de volta a um pesadelo de quartos fechados e cárcere privado. O vampiro percebeu minha ação, porém, não disse  nada a respeito disso, preferindo ficar olhando para mim do outro lado da mesa fixamente.
— Ficar olhando para mim assim não vai me tornar uma pessoa mais gentil com você, Kai — cantarolei, dando um gole na taça. Tive que admitir que ele tinha bom gosto mesmo se tratando de uma pessoa que não era muito fã de bebidas alcoólicas.
Ele assentiu com a cabeça.
— Eu sei que está aqui por causa das meninas e não por mim — disse apenas, fazendo desenhos imaginários no cristal da taça — Aprecio seu esforço.
E ele continuava me encarando daquela forma e isso sempre me deixava nervosa. De uma maneira boa e ruim. Sempre os dois.
— Sabe — disse eu — Eu nunca soube o que se passa na sua cabeça. Principalmente quando olha para mim desse jeito.
Isso fez um pequeno sorriso surgir nos cantos de seus lábios.
— Eu sou homem. Não é difícil de se imaginar.
Arqueei uma sobrancelha.
— Algo que aprendi sobre você em todos esses anos é que não é como os outros homens.
— Em que sentido? — perguntou, entrelaçando os dedos e inclinando-se sobre a mesa.
— Em todos os sentidos — murmurei, simples.
— E isso inclui tudo de bom?
Olhei-o de cima a baixo com uma expressão fria.
— O lado mau também.
Kai ficou em silêncio por alguns segundos, apenas encarando-me com aqueles olhos cinzentos e únicos.
— Ok. Vamos falar sobre isso.
— O que exatamente? — perguntei, um tanto perdida no cunho da conversa.
— Eu sequestrei você — declarou com um olhar desafiador — A torturei, estuprei e a obriguei a viver comigo como se fôssemos próximos de alguma forma. Eu sou um monstro. Sei disso agora, porque tenho uma filha e ela é a luz que ilumina as trevas do que eu sou.
Olhei em volta, nervosa, pois não esperava que ele fosse tocar num assunto que parecia ser o que mais o deixava desconfortável.
— Kai, não é hora de falarmos sobre isso. As meninas…
— As meninas estão brincando no quarto — me cortou — Posso ouvi-las daqui.
Apurei a audição apenas para comprovar que ele tinha razão. Droga, eu não tinha como fugir daquela conversa.
— Não acho que esse assunto vá melhorar as coisas entre nós — tentei finalizar aquilo, mas Kai não estava com cara de quem ia voltar atrás em sua resolução.
— Mas precisamos falar sobre, pois toda vez que estamos sozinhos, é como se tivesse a droga de um elefante na sala.
Tomei outro gole de vinho e sorri ironicamente.
— Quer falar sobre isso porque o incomoda? Sabe que eu passei por mais incômodos que você, não é?
O vampiro se remexeu na cadeira, outra vez desconfortável.
— Eu sei que eu estava errado — começou — Eu sempre faço tudo errado…
— Não —  sacudi a cabeça numa negativa — Você faz tudo pensando apenas em si mesmo e no que isso interfere na sua vida. Alguma vez você me perguntou se eu queria falar com você, Kai? Não, você sempre impôs sua presença, achando que conseguiria minha atenção na base da força e persistência.
— E olha no que resultou — apontou para o corredor além da cozinha que dava para os quartos da casa — Nós temos duas meninas lindas e incríveis. Tudo o que eu fiz foi mais que desprezível. Mas os fins justificam os meios, não? Ou você se arrepende de tê-las em sua vida?
Empertiguei-me no assento da cadeira.
— Não ouse usar as meninas contra mim, porque nem nisso eu tive alguma opção. Você me engravidou e eu tive que amá-las, porque passaram a ser a minha família e o meu amor. Mas eu queria ter podido escolher outro pai para elas, ter tido uma vida onde eu não tivesse que esconder da Eve que ela foi resultado de uma monstruosidade.
Kai deu um sorriso cínico e virou a taça de vinho em só uma golada.
— Monstruosidade? — riu ao pousar a taça vazia sobre a mesa — Pelas minhas contas, na época em que elas foram concebidas, você já estava muito receptiva aos meus avanços.
Tive que soltar a taça de vinho ou corria o sério risco de estourar o fino cristal entre meus dedos.
— Você acabou com a minha sanidade e…
— Não, não, não — interrompeu, enérgico — Não venha com esse papo de vítima traumatizada, Bonnie. Se eu devo admitir meus erros, também tenha coragem de admitir os seus — disse apontando o dedo na minha cara. Se não estivéssemos em lados opostos, eu já o teria arrancado com uma dentada — Você gostava de estar comigo, gostava do que eu causava no seu corpo, gostava quando estávamos a sós e o fato de ninguém saber quais pecados você curtia na cama. Você pode me odiar e não gostar de mim, mas adorava quando eu fazia você sentir coisas que nenhum homem jamais fez. E com certeza eu estou certo, pois por mais que você tenha dormido com outros caras, sabe que nenhum deles será como eu. Admita, Bonnie, você gostou de se submeter a mim.
Se eu pudesse atravessar uma estaca no peito de Kai, com toda a certeza, teria feito aquilo naquele momento. Respirei fundo.
— Tá legal — anui com a cabeça — Você é bom de cama. Se formos botar isso em palavras claras: Você transa gostoso pra caralho — inclinei-me sobre a mesa, mirando sua expressão um tanto surpresa — Eu não conseguia e nem queria resistir, porque como você mesmo adora ressaltar, apenas com você eu atingia todos aqueles orgasmos e apenas com você eu conseguia ser eu mesma na cama — e coloquei o indicador sobre a mesa para deixar meu ponto bem claro — Mas, isso nunca vai apagar o fato de que você me torturou e estuprou. Nunca.
Kai continuou sentado ali com cara de poucos amigos e braços cruzados fortemente sobre o peito. E passaram-se longos minutos, nos quais, pensei que aquela conversa já estava finalizada. Porém, Kai nunca me deixaria dar a palavra final. Quando falou, sua voz estava mais baixa, quase que num sussurro.
— Tudo o que eu queria era o seu perdão, porque eu não parava de pensar na dor que causei em você no Mundo Prisão — ele prosseguiu, olhando para mim com pesar em seu semblante — Você era solitária. Assim como eu. Achei que me entenderia mais do que ninguém. Naquela época eu precisava de alguém que me ensinasse a ser bom. Pensei que você seria essa pessoa — sua voz embargou — E você me rejeitou. Como todos os outros fizeram antes de você. E doeu tanto que eu achei que simplesmente teria que ensiná-la a gostar de mim. Mesmo que fosse a força. Eu sei que sou culpado de muitas coisas, mas não posso ser culpado por dar apenas o que recebi a vida toda.
Uma lágrima desceu por sua bochecha e ele a capturou rapidamente, enxugando os olhos com as costas da mão. Percebi que meus olhos também estavam marejados.
Eu não sabia que tipo de resposta dar para aquela declaração. Estava tão acostumada a associar Kai a uma falta de humanidade latente que vê-lo naquele estado fez meus neurônios entrarem em parafuso.
— Você tinha um desenho, meu — falei, subitamente me lembrando — Datado de dois dias antes de ir parar no Mundo Prisão. Como isso é possível? Eu era apenas um bebê naquela época.
Kai apenas deu de ombros sem parecer surpreso com minha pergunta.
— Eu sonhei com você dois dias antes. Fiquei intrigado e acabei desenhando o que vi no sonho.
Aquilo foi surpreendente. Sonhos premonitórios eram sinais muito fortes para bruxos.
— Então… — conclui, estarrecida —... quer dizer que estávamos destinados a nos encontrar.
Kai assentiu.
— Eu acho que sim.
Agora eu consegui entender parte da obsessão dele por mim. Kai sentia que estávamos ligados há mais de duas décadas atrás.
O fitei durante um bom tempo, agora com uma perspectiva diferente da nossa relação. Kai apenas continuou sentado ali em silêncio, olhando para mim, parecendo um tanto aliviado, provavelmente, por ter falado tudo o que necessitava. Porém, sua expressão serena mudou de repente.
O vampiro fechou os olhos e se remexeu na cadeira, incomodado.
— O que foi, Kai? — questionei, estranhando aquele comportamento.
— Não — ele disse apenas, desviando o ombro de alguma coisa.
— Não o que? — franzi o cenho.
Ele abriu os olhos e tentou parecer o mais normal possível.
— Não é nada ... eu estava apenas… — e fechou os olhos com força novamente — Não, para… Agora, não, por favor — sussurrou para ninguém em particular, pelo menos, não alguém que eu pudesse ver.
— Kai? — chamei, estranhando aquele comportamento.
— Por favor — ele implorou de olhos fechados e colocou as mãos na cabeça, como se estivesse contendo algo ali — Vai embora… vai embora… vai embora…
Ele dizia isso e se balançava para frente e para trás, sacudindo a cabeça freneticamente.
— Vocês estão todos mortos… — balbuciou, encostando a testa no tampo da mesa e se envolveu com os braços, criando um escudo em torno de si — Não é real, não é real, não é real… — repetia desesperado.
O que estava acontecendo ali?
Levantei e caminhei lentamente na direção dele. Estendi a mão de maneira hesitante e toquei seu ombro para chamar sua atenção. Porém, mãos frias e invisíveis tocaram a minha e, então, me empurraram com um safanão. Eu estava quase achando que Kai estava usando algum feitiço contra mim, quando ergui os olhos e vi um grupo de cadáveres ensanguentados sobre Kai, sussurrando coisas em seus ouvidos.
E então, quando perceberam que eu os via, pararam de falar e colocaram aqueles olhos azulados, brilhantes e mortos sobre mim.

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Nota da Autora:

Oi meus queridos, tudo bem?

Olha, devo dizer que escrevi horrores nesse capítulo. Foram, 11.000 palavras kkk! Não ficou exatamente da forma como eu queria, mas acabou se encaixando na trama.
Espero que estejam gostando! Obrigada pelos comentários e a paciência com esse ser aqui. Amo vocês

Beijinhos xxx. Até o próximo 😎🔥

LAÇOS MORTAIS | Bonkai |Where stories live. Discover now