Capitulo 16 Gabriela

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Gabi

Quando nascemos já estamos a morrer, é a ordem natural das coisas. Ao longo da vida somos bombardeados com a informação da morte, até a uma certa idade os nossos pais que são supostamente os nossos protectores, enfiam-nos tretas pela goela abaixo: o canário morre e eles dizem que foi para o céu, o cão morre e foi passar férias, o gato casou e os peixes foram para o mar porque tinham saudades.

Ouvi isto tudo…reconheço que na minha casa a propensão para os animais domésticos morrerem eram grandes. É um mistério que ainda hoje a família tenta desvendar. Como a Gabi conseguiu matar um canário numa semana, ou gato morreu passado apenas um mês…quanto ao cão foi atropelado, não tive culpa dele ser velho e surdo…Amei todos os meus animais, assim como amo tudo o que existe na minha vida.

Mas existe uma coisa que ninguém consegue mascarar: O sofrimento. Os pais por melhores que sejam não o conseguem esconder, não o conseguem mascarar com férias ou casamentos absurdos. A dor existe, é real. Sentimos dor desde o momento em que nascemos…mas a dor e o sofrimento só pioram com a idade. Deixamos de ter as meras dores físicas, para passarmos a ter aquelas que nos tiram a alma, que nos fazem perguntar o quão justa é esta vida e quão sábios somos nós para aproveitar o sofrimento para crescermos.

Aqui jaz a verdadeira certeza: Ninguém quer ser sábio e crescer, ninguém ser saber se a vida é justa…queremos só que o sofrimento passe e acabe.

Era assim que eu pensava, queria apenas que o sofrimento passasse, não agora…agora por vezes dou por mim a pensar, que enquanto sofremos estamos vivos…

A minha visão mudou quando Gio ficou doente. Ninguém sabia o que ele tinha…tudo começou depois de um jogo de futebol, ele sentiu-se tonto e caiu. Mas ele não foi ao médico. Aos vinte e poucos anos não ficamos doentes, a menos que seja uma gripe – aí estamos quase a morrer – aos vinte e poucos anos, bebemos demais no dia anterior, não dormimos, estivemos a dançar.

Meses depois deste pequeno episódio foi-lhe diagnosticado esclerose múltipla, pelo meio vieram outros sintomas, a visão dupla, as mãos sempre dormentes. Fui eu quem lhe marcou as consultas, fui fazer os exames.

Lembro-me de brincarmos com a situação. Eu dizia-lhe que ele era tão promíscuo que só podia ser uma DST.

Mas o choque chegou. Estávamos no Verão, íamos ao médico receber o resultado dos exames e depois tínhamos combinado ir beber uns copos, eu iria conhecer o sabor da semana, por que qualquer relação do Gio tinha um prazo médio de uma semana.

O meu mundo caiu naquele dia. O meu primeiro amor, aquele amor que me custou tanto a conquistar, o primeiro homem que me viu nua, o homem que eu tinha sonhado um dia ser o pai dos meus filhos estava doente, com uma doença que na minha cabeça só existia nos velhos… era impossível.

Os olhos dele naquele dia apenas perderam o brilho…fizemos perguntas parvas ao médico. Quanto tempo de vida tinha? Se ele iria parar a uma cadeira de rodas quanto tempo ainda havia…e tudo e todas as perguntas naquele dia foram sobre o tempo.

Não bebemos naquele dia, ele acabou com o amor da semana por uma mensagem de texto e conduzimos até Pistoia. Não falamos nada, apenas fomos aquela livraria e apesar do calor bebemos um chocolate quente.

Naquele dia fizemos uma viagem ao passado…éramos uns miúdos e fizemos uma viagem ao passado. Recordámos quando ele entrou em minha casa pela primeira vez, tão apaixonado pela minha mãe que nem reparou na menina que estava a um canto da sala, completamente perdida nos seus olhos verdes, no seu andar desengonçado. Aquele andar típico de miúdo que cresceu depressa demais e ainda não se habituou à sua altura. Se fechar os olhos ainda me lembro, hoje, passados vinte anos dos seus jeans rotos nos joelho, uma camisola ao xadrês que me fazia lembrar o Kurt Cobain e uns all-star imundos. Os all-star que mais tarde vim a descobrir que estavam sempre escondidos na sua mochila, porque os pais dele nunca permitiriam que ele andasse assim na rua, afinal ele era o filho do advogado e dono da empresa de construção mais importante de toda a cidade.

Quando te deixei, amor (disponível até 03/05)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora