Capitulo 3 parte 1

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Desdobro-me em movimentos para sair da cama, sem acordar Cesca. Está como sempre, deitada de barriga para baixo, com as mãos protegidas debaixo das almofadas. Não me preocupo em vestir, apesar de sentir o frio picar-me os músculos, a dor física é bem-vinda…mas a insónia não. É um contra-senso pensar assim visto que a dor física leva à insónia.

Saio da cama e caminho para a janela, não vejo nada além de outro edifício à minha frente, uma parede em tons de cinzento, cheia de sombras, criadas pela iluminação da rua. Sento-me! Abro e fecho as mãos na esperança que a dormência que eu sinto passe. Olho em redor para aquele que há uns meses atrás era o meu abrigo e o meu refugio, o meu bunker. Reconheço todos os cantos, todos os objectos, assim como reconheço todas as curvas do corpo que está nu na minha cama, mas é apenas o vazio que me preenche.

Tudo o está arrumado, perfeitamente organizado, composto e perfeito.

Algures entre o acabar de fazer amor, ou sexo, ou apenas fazer o que era o correcto, e dormir a Cesca arrumou a minha bagagem, lavou os copos do vinho, colocou a roupa suja no cesto e organizou os meus medicamentos, apagou as velas, deitou fora o que era para deitar e eu apenas fingi dormir.

As minhas necessidades acima das dela, a sua capacidade em controlar tudo o que a rodeava, principalmente o que me rodeava. Era isto o que eu tinha escolhido…tudo o que de alguma forma nos fez afastar um pouco, foi o que eu escolhi para o meu futuro.

Cesca organiza a vida como se apenas essa capacidade fizesse com que ela conseguisse antecipá-la. Como se a vida fosse algo que apenas precisasse de um plano, que não houvesse factores externos que a condicionassem…o controle e a organização…

Foi para isto que eu voltei…foi para isto que eu a deixei!

Conheci-a num jantar de amigos e foi amor à primeira vista. Ficamos um ao lado do outro e entre conversar com um amigo barrigudo, careca e cujo tema de conversa era um jogo online, preferi voltar a minha atenção para Cesca, que só a sorrir fazia-me sorrir também. Nunca houve uma ponta de maldade nela. Ela é aquele tipo de pessoas que todos amam à partida.

Não sou hipócrita ao dizer que o que me chamou à atenção não foi o seu corpo, porque inicialmente foi. Loura, sem uma ponta de gordura, uns seios que dá vontade a todo o homem de bom gosto afogar-se neles, alta e os seus olhos violeta…mas foi amor à primeira vista. Aquela sensação que nos enche o peito, que faz com que tudo à volta desapareça e que seja só aquela pessoa que existe no mundo…assim era a Cesca para mim.

No dia que a conheci a primeira pessoa a quem liguei foi ao Miguel. Foi o Miguel o primeiro a saber do meu amor. Ele não me levou a sério, para ele era apenas mais uma …mas eu sabia que ela era a mulher da minha vida…cinco anos depois ela é a mulher que vai ficar na minha vida…não a mulher da minha vida.

Sou egoísta, não há como negar. Eu amo a Cesca, eu amo-a como se ama uma grande e maravilhosa amiga, existe alguma paixão…mas é apenas isso: Alguma!

Em cinco anos a vida mudou tanto… Tínhamos um ano de namoro e o nosso primeiro ano foi maravilhoso. Tudo o que um homem quer. Viagens, jantares, bons empregos, o casal sensação do nosso grupo de amigos, aquele casal que todos invejam. Mas ao fim de um ano a vida mudou. Mudou radicalmente! Aquele grande surto, aquilo que todos os doentes de E.M. sabem que vai acontecer, mas que esperam que nunca aconteça, surgiu.

Levou-me para um internamento, para uma cama e a seguir para uma cadeira de rodas. Muito trabalho da minha parte para me tentar reerguer, muita luta para usar as muletas e a Cesca sempre a meu lado, uma rocha.

Pedi-lhe mais de mil vezes que me deixasse, que fosse embora, que vivesse a sua vida, mas ela permaneceu mesmo quando eu lhe dizia as piores coisas, quando a desprezava…ela ficou sempre. E o que é que ela fez? Organizou-se, planeou…mudou de casa, fez cursos para saber como me iria poder ajudar, leu, informou-se, falou com médicos e enfermeiros, inscreveu-se numa associação de familiares de portadores de E.M.

Ela fez isso tudo e eu afoguei-me numa depressão. A notícia da minha doença espalhou-se pelo mundo artístico e eu perdi o emprego…mas Cesca esteve lá sempre, até quando eu estive a centímetros de me tentar suicidar…ela salvou-me!

Eu sou egoísta…ela só me fez bem e eu choro por outra pessoa.

Cesca mexe-se na cama. Sustenho a minha respiração, como se bastasse isso para não acordar. Preciso de estar sozinho, de voltar a entrar na minha vida, de me habituar novamente à presença dela. De interiorizar que posso amá-la novamente como a amei um dia.

- Gio… - Ela murmura.

Respiro fundo.

- Estou aqui!

Ela senta-se na cama, despenteada, com as rugas da almofada marcadas na face, procura a t-shirt que está ao fundo da cama e vem na minha direcção. Ajoelha-se ao pé de mim, para ficar do meu tamanho.

- Estás com dores?

Abano a cabeça…minto.

- Então?

- Sem sono Cesca! Acho que é jet-lag. – Brinco.

Ela sorri.

- Aqui é mais uma hora…vou buscar o teu medicamento para dormires. – Levanta-se.

- Eu não quero Cesca!

- Não vamos discutir isso! Vais tomar sim. Precisas de dormir, de descansar…amanhã sei que não vais parar. – Levanta-se e anda em direcção ao armário.

- Eu já disse que não quero.

- Gio, por mim! Toma-o por mim, faz-me esse favor.

Sorri…eis que as pequenas chantagens começavam. Mas não iria discutir…ela merecia que eu fizesse isso por ela.

Fiz um acordo comigo…um acordo em que eu me permitia fechar os olhos e adormecer a pensar na Lexie, porque de alguma forma a Cesca estava feliz. Concordei em que seria a última vez que eu pensaria na Lexie por querer.

Xxx

Acordei com o barulho dos carros, das pessoas, turistas muitos turistas. Já não estava habituado e este caos urbano.

Cesca já não estava. Mas tinha deixado um recado, que mais parecia uma ordem, para eu não esquecer os medicamentos e para ligar o telemóvel com o número de Itália.

Suspirei. Dei aquele tempo necessário para o meu corpo habituar-se à ideia que já estava acordado…mexi uma perna, a seguir a outra. Avaliei o nível de dores e incómodo. As costas estavam a matar-me como todas as manhãs na última semana.

Respiro fundo…penso numa tela em branco. Pequenas pinceladas vão surgindo, primeiro os azuis, depois os verdes…mais um pouco de azul, mais um pouco de verde…música vai surgindo e os pincéis que estão na minha cabeça vão pintando a tela.

Levanto-me devagar e continuo na minha viagem para esquecer a dor, pincéis, cores, telas e música. Tenho uma garrafa de água na mesa-de-cabeceira. Os medicamentos também estão lá, num saco minúsculo e uma bolacha também, só para me lembrar que tenho de comer alguma coisa antes de os tomar. Cesca no seu melhor.

Salto a bolacha…dispenso a bolacha. Enfio os comprimidos pela garganta abaixo, dois golos de água por até estar nesta posição estranha me faz mal. Caiu de volta na cama. Pinto a tatuagem da Lexie…a rosa que ela tem no dorso, que combina tão bem com os seus lábios…estico a mão e agarro a almofada da Cesca. Cheiro-a para me trazer de volta à realidade.

No meio das inalações, das dores que vão indo, do meu quadro, consigo voltar a adormecer.

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Sei que o capitulo está curtinho...mas amanhã à mais....
Isto de escrever como homem é diferente e acho que vou esquecer...vou passar só a escrever como um ser humano que é. Que sofre com as escolhas e que tenta tirar o maior proveito delas.

Até amanhã meus amores :)

Beijos Gordos

Quando te deixei, amor (disponível até 03/05)Where stories live. Discover now