As colheitas estavam se aproximando e isso me mantinha ocupado na fazenda a maioria dos dias. O clima entre Bash e sua mãe estava melhorando. Já não discutiam o tempo todo e ela agia um pouco mais naturalmente comigo. Apesar de tudo eu estava feliz por ela ter vindo. Bash teve a chance de resolver seus problemas com ela e não ficaria sozinho quando eu fosse para a facudade.
Minha vida havia mudado muito nos últimos tempos. Não havia mais as aulas, nem o grupo de estudos e nem mesmo o jornal. Tudo havia mudado e isso me entristecia um pouco. Eu sentia falta dos meus dias corridos, dos meus colegas e das discussões sobre o jornal. Mas acima de tudo eu sentia uma imensa falta de Anne.
A chegada da Sra Lacroix resolveu um grande problema para nós, já que Marilla e Rachel não poderiam cuidar de nossa casa e de Delphine para sempre. Mas isso também nos afastou dos Cuthberts. Não que a amizade houvesse acabado, mas havia muito trabalho nas fazendas naqueles dias com as colheitas de verão. Após o término desse período extra de trabalho já será a hora de Anne e eu partirmos para a faculdade e nada mais será como antes.
Crescer, seguir em frente, finalmente ingressar na faculdade, isso tudo era muito bom. Mas às vezes eu sentia que desejava voltar o tempo. Apenas para poder vê-la brigar comigo todos os dias. Com aqueles fascinantes olhos azuis me enfrentando. Porém, esse tempo já não voltaria mais e tínhamos que seguir em frente.
Com a minha desistência de ir para a Sorbonne eu tinha duas opções. Eu poderia tentar uma intervenção da Srta Stacy para ingressar na Universidade de Toronto, o que eu acreditava que só daria resultado se minhas notas fossem muito boas. Ou poderia ir para a Faculdade de Queens agora e quando me formar tentar algo na área de pesquisas médicas.
A primeira opção seria bem melhor para meus estudos, já que eu estaria mais perto das pesquisas que eu desejo tanto participar. Eu queria tanto fazer a diferença na medicina, participar de estudos que poderiam revolucionar tudo. E se tivesse essa oportunidade eu faria isso, faria por meus pais, faria por Mary e por tantas pessoas que não tiveram chances diante de uma doença. Eu sentia que tinha esse dever.
Mas indo para a Queens eu estaria mais perto de Anne...
Eu vinha evitando ao máximo me encontrar com pessoas que pudessem me fazer perguntas sobre meu compromisso com Winifred. Não queria mentir e estava preso à promessa que havia feito à ela.
O fato de estar mais ocupado na fazenda ajudava. Mas também havia a reconstrução da escola. E lá eu tentava trabalhar em silêncio a maioria do tempo. Se alguém fazia um comentário, eu simplesmente silenciava, ou mudava o assunto. E assim passou a primeira semana da minha promessa.
Mas não pude evitar me encontrar com todos os meus colegas de classe quando nos reunimos na casa da Srta Stacy para o anúncio de nossas notas. Estava esperando ansiosamente por esse dia. Eu finalmente saberia minhas notas e, se fossem boas pediria para a nossa professora interceder por mim.
Quando cheguei Anne já estava lá. Era a primeira vez que eu a via desde o dia que conversamos nas ruínas. Era tão bom voltar a vê-la, mas ao mesmo tempo eu não sabia ao certo como agir. Desde aquele dia havia acontecido tantas coisas, eu havia compreendido tantas coisas.
Também não sabia o que ela sentia ou pensava sobre aquele dia. Ela pareceu tão surpresa, tão assustada quando lhe falei dos meus sentimentos!
Tentei manter a distância, mas meus olhos me traiam e sempre buscavam seu rosto. Ela conversava com Diana do outro lado da cozinha da Srta Stacy. Parecia um pouco tensa, talvez por causa das notas. Nossos olhos se cruzaram algumas vezes, mas eu desviei os meus.
Ela provavelmente sabia que eu havia decidido me casar com Winifred. Se o Sr Barry comentou em casa, certamente Diana contou para ela. Meu desejo era ir até ela e dizer que eu nunca me casaria com alguém que não fosse ela. Qual seria sua reação se eu fizesse isso?
- Candidatos da Queens! - a Srta Stacy entrou segurando as folhas com as notas nas costas - Tenho nas mãos as notas das provas de admissão. Independentemente do resultado estou orgulhosa de como trabalharam duro e de como se superaram. Deram um ótimo exemplo a Avonlea. E agora... - bateu com as folhas na mesa - Vejam!
Todos correram animados para os papéis e começaram a procurar por seus nomes.
- A Diana entrou! - Tillie, que tinha tomado à frente de uma das folhas anunciou.
Anne abriu um lindo sorriso e parabenizou a amiga. Diana havia decidido fazer as provas na última hora e fiquei muito feliz porque Anne teria sua melhor amiga ao seu lado quando fosse para a Queens.
- O Gilbert e a Anne empataram em primeiro lugar! -Tillie anunciou mais uma vez.
Dessa vez o sorriso dela foi direcionado a mim, e meu coração se encheu de alegria e orgulho. Por ter conseguido as notas que eu precisava para tentar a Universidade de Toronto. E por Anne estar ao meu lado nessa conquista. Não havia mais disputas, éramos iguais.
Anne continuou me olhando e começou a contornar nossos colegas que continuavam reunidos em torno da mesa. Ela vinha na minha direção.
- Com essas notas, vou dizer au revoir, porque o melhor da ilha vai para Paris! - Moody gritou e eu fiquei sem jeito, todos pareciam saber que eu iria para Sorbonne e eu estava impedido de revelar que não iria.
- Parabéns! - Anne disse me estendendo a mão.
- Obrigado. - apertei sua mão pensando em como eu senti falta de olhar aqueles olhos.
- Tem algo que gostaria de dizer? - ela perguntou - Que queira dizer... para mim?
Ah! Havia tantas coisas que eu queria dizer a ela. Meu coração gritava: Eu não estou noivo. Eu te amo!
- Eu... é... meus parabéns. - foi o que eu disse.
- Pessoal! - a Srta Stacy chamou a atenção de todos e nos viramos para ela - É com o coração pesado, mas orgulhoso, que digo pela última vez... Classe dispensada!
Olhei para Anne, ela parecia emocionada, prestes a chorar. Ela e a Srta Stacy haviam criado um vínculo profundo e eu sei que aquela separação doía. Doía em mim também, eu guardaria esses últimos anos de escola para sempre em minha memória.
- Foi a melhor professora, Srta Stacy. - Diana falou abraçando nossa professora que também estava emocionada.
- Lâmpadas de batata para sempre! - Moody gritou.
- Posso visitá-la antes de ir para a Queens? - Anne perguntou à Srta Stacy quando todos começaram a sair.
- Tive a mesma ideia. Sim, por favor.
Anne saiu com as amigas e eu fiquei para trás, precisava falar com a Srta Stacy longe de todos.
- Srta Stacy, podemos conversar? Em sigilo absoluto? - eu perguntei quando estávamos sozinhos.
- É claro.
- Não posso explicar agora, mas não vou pra Sorbonne. - ela pareceu triste com a notícia, mas eu não podia explicar para ela que não havia motivos - Com essas notas, entro para a Universidade de Toronto, certo?
- Seria uma entrada tardia.
- Mas se a senhorita... escrevesse para sua amiga médica...
- Emily? É claro!
- Uma recomendação sua poderia selar meu destino agora que tenho minhas notas.
- Mandarei um telegrama. Não há tempo a perder.
- Obrigado!
Quando cheguei em casa Bash estava à minha espera na varanda.
- E então? Conseguiu uma nota boa?
- Anne e eu ficamos em primeiro! - eu disse orgulhoso.
- Parabéns irmão! - ele falou me abraçando - Vocês dois, heim? Foram feitos um para o outro mesmo! - eu apenas ri - Você vai tentar ir para Toronto agora?
- Sim, a Srta Stacy vai enviar um telegrama para a amiga dela. - suspirei - Acho que vou conseguir!
- Você já percebeu que vai para o outro lado do país?
- Eu sei onde é Toronto, Sebastian!
- E sabe onde é Charlottetown também, não é?
- Onde exatamente você está querendo chegar?
- Em uma semana, você poderá estar indo morar muito longe, Blythe! E vai embora assim? Sem falar para Anne que não está noivo? Sem dizer o que sente?
- Ela sabe o que eu sinto, e disse para eu me casar com a Winifred!
- Sabe? Sabe mesmo? Você olhou dentro dos olhos dela e disse claramente: Eu amo você?
- Não, mas...
- Então você não fez da forma correta! Pense nisso! - ele falou saindo.
Bash tinha razão. Eu estava prestes a me separar de Anne por muito tempo. Ainda viria para casa nas férias, mas não poderia vir sempre. E nada me garantia que ela estaria aqui ao mesmo tempo.
Por mais que Winifred merecesse que eu cumprisse a promessa que lhe fiz. Eu precisava dizer a Anne que não estava noivo. Eu havia decidido que seria sincero comigo mesmo e não poderia deixá-la sem ser verdadeiro com ela também.
No dia seguinte fui até Green Gables, com a desculpa de devolver a caneta de Anne, que estava comigo desde o dia anterior às provas. Bati na porta, mas ninguém atendeu.
- Olá! - fui entrando - Olaaá?
Não tinha ninguém em casa. Deixei a caneta para ela em cima da mesinha perto da porta. Mas eu não poderia sair. Eu não fui até lá apenas entregar uma caneta. Olhei em volta e encontrei um pedaço de papel. Era uma lista de compras. Virei do outro lado e comecei a escrever.
Querida Anne,
Já que estamos nos separando, talvez para sempre sinto que devo abrir meu coração.
Você é o objeto da minha afeição e do meu desejo. Você e só você, tem a chave do meu coração.
Por favor, não se assuste. Não espero ser correspondido, mas não posso, em sã consciência, esconder isso. Não vou me casar, e nunca me casarei, a menos... que seja com você. Anne, minha Anne com E.
Sempre foi e sempre será você.
Com amor, Gilbert.
P.S. obrigado pela caneta. E boa sorte em Queens.
Dobrei o papel, escrevi seu nome e coloquei em cima da mesa, com a caneta. Estava saindo quando pensei que talvez ela não encontrasse ali. Ou talvez outra pessoa lesse e aquilo era algo que deveria ficar entre nós dois, se ela quisesse.
Peguei o papel de volta e subi a escada. Uma vez eu a vi pela janela de um dos quartos e segui naquela direção. Ao entrar tive certeza de que aquele quarto pertencia à Anne.
Tudo naquele lugar lembrava ela. Na cabeceira da cama havia um cordão repleto dos pequenos tesouros que ela gostava de colecionar. Flores, pinhas, conchas, penas, uma coroa de flores. Eu sorri ao pensar em como Anne tinha a alma bonita.
O quarto tinha um perfume de lavanda, me lembrei que senti esse cheiro quando Anne me abraçou no dia que soubemos da doença de Mary. Apesar de toda a tristeza e desespero que senti naquele dia. Eu jamais seria capaz de esquecer a sensação de tê-la em meus braços.
Deixei minha carta em cima de sua penteadeira. E fui embora.