4 - Contando minha história

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- Oi, papai. Como está se sentindo?

- Estou bem, filho. - ele sempre me dava essa resposta, mesmo que não fosse verdade - Mas, me conta! Como foi seu dia?

Eu suspirei, não queria falar sobre aquele dia. Queria esquecê-lo. Esquecer aquela menina e a culpa que eu sentia por minha atitude grosseira. Mas, ao mesmo tempo não queria mentir para meu pai.

- Bem, foi um dia... confuso!

- Ah! Vamos filho, eu estive o dia todo nessa cama. Preciso de alguma distração! Conte-me, mesmo que seja sobre as lições de geometria!

- Não foi a geometria que me confundiu hoje. Foi... uma menina!

- O quê? Uma menina? Haha, finalmente filho!

Eu devia ter imaginado que ele teria esse tipo de entendimento.

- Não! Não é isso! Foi só uma história maluca que envolve uma garota nova da escola!

- Sei! E... como se chama essa menina?

- Anne! Anne Shirley!

- Você devia ver sua expressão quando falou esse nome, filho! Ela realmente mexeu com você não foi? - ele disse meio rindo, meio tossindo.

- Que bom que está se divertindo! Mas não deixe sua imaginação viajar demais, por favor.

- Estou preso a essa cama, garoto. Ao menos minha imaginação ainda pode viajar! Mas deixa de enrolar e me conta essa história logo.

- Bem... como eu disse, tem essa menina nova na escola, Anne!

- Shirley você disse, não é? Alguma família nova na região? Não me lembro de nenhum vizinho com esse nome!

- Ela é órfã, foi adotada pelos Cuthberts.

- Pelos Cuthberts? - ele falou surpreso - Marilla... adotando uma criança? Aí está uma boa novidade!

Meu pai sempre se referia aos Cuthberts com um ar de quem não conta toda a história. Uma vez eu o questionei e me contou que a Srta Marilla foi sua amiga na época da escola, nada mais. Porém, ainda fiquei com a impressão de que havia algo não contado.

Após essa informação ele ficou ainda mais interessado na tal garota e me quis que eu a descrevesse. Sempre com um sorriso no rosto. Como se visse algo que eu não entendia.

- Bem... ela deve ser um ou dois anos mais nova que eu. Tem olhos azuis, e cabelos vermelhos...

- Ruiva? E é bonita?

- Sim. - admiti encabulado.

- E a personalidade dela, como é?

- Acabo de conhecê-la, mas posso dizer que tem um temperamento forte! - eu disse sorrindo.

- Temperamento forte? Entendo o apego de Marilla por essa menina! - ele comentou - Mas ainda quero conhecer sua história!

Contei-lhe então toda história daquele dia estranho no qual tentei começar como um herói, mas acabei como o vilão. Meu pai, pode-se imaginar, achou tudo muito divertido. Desde a história toda da calúnia que envolvia um rato no bolso do professor até o fato de eu ter agido como um imbecil e, é claro, ter recebido meu merecido castigo.

- Filho, você teve um dia bem interessante mesmo!

- Eu disse que foi um dia um tanto confuso.

- Fez bem em tentar fazê-la se sentir acolhida, ainda que seus métodos não tenham sido os mais aconselháveis! - ele debochou.

- O senhor sabe que eu nunca gostei desse tipo de brincadeira que os garotos usam para chamar a atenção. Mas quando eles fazem isso, por mais que sejam grosserias, as meninas parecem gostar, ainda que digam o contrário.

- Mas essa Anne é diferente, não é?

- Sim, ela é... diferente!

Essa era a verdadeira lição a se tirar de toda a história. Anne não era uma garota comum. Ela era diferente das meninas que eu conhecia. Na aparência e nas atitudes.

Isso fazia eu me sentir intrigado e, ao mesmo tempo, instigado a conhecê-la melhor. Que outras surpresas aqueles grandes olhos azuis escondiam? Eu me sentia desafiado a descobrir.

Mas antes, precisava me desculpar o quanto antes.

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Na manhã seguinte eu a esperei no bosque. Queria falar com ela antes de chegarmos à escola. Sem que ninguém visse, já que, por algum motivo, ela parecia não querer que nos vissem conversando.

Ela, porém, não apareceu.

Corri para não me atrasar imaginando que Anne tivesse chegado mais cedo. Mas ela não estava na escola, e não apareceu naquele dia. O que fez eu me sentir ainda mais culpado.

Depois, pensando melhor, achei que era melhor que Anne não estivesse na escola naquele dia.

As fofocas ainda não haviam dispersado, pelo contrário. Minha merecida recompensa por ofendê-la e sua fuga no meio da aula se tornou um belo combustível para as conversas maldosas de nossos colegas.

- Ei, Gilbert. Como você está se sentindo depois do que aquela órfã fez com você? - Moody questionou quando cheguei.

- Eu fiz por merecer, amigo. A ofendi e recebi o castigo merecido!

Todos riram. E eu me afastei. Não daria mais motivos para as conversas.

Vi Diana Barry olhando a cadeira vazia ao seu lado, visivelmente triste.

- Diana, com licença, você pretende visitar a Anne? - iniciei a conversa, mas ela me lançou um olhar gélido - Poderia... dizer a ela que eu não tive a intenção de ofendê-la?

- Não, senhor Blythe, eu não vou visitá-la. Minha mãe ainda não permite que eu a visite! E espero que você se sinta culpado mesmo, porque a magoou profundamente.

- Eu... eu não sabia que iria magoá-la tanto, só queria que ela... falasse comigo.

- Você não entende, não é? Anne detesta o fato de ser ruiva. Acha que a cor de seus cabelos a deixa feia. E, de qualquer forma, ela não falaria mesmo com você!

O professor entrou e tive que voltar para minha mesa. Mas aquela conversa tinha me deixado ainda mais confuso.

Em primeiro lugar, como Anne era capaz de dizer que seus cabelos eram feios? Eu nunca tinha visto nada mais impressionante que aqueles cabelos vermelhos! Mas pensando nas conversas do dia anterior, talvez nem todos pensassem da mesma maneira. Havia escutado as meninas dizendo que ela era feia e coisas desse tipo. Seria possível que só eu a achasse bonita?

Não, com certeza não. Devia ser uma cegueira momentânea por causa de toda aquela confusão e do preconceito. Logo aquela loucura passaria e todos a veriam como ela realmente era.

E depois, o que Diana quis dizer com "de qualquer forma, ela não falaria mesmo com você"? O que eu fiz para aquela garota afinal, para ser tratado daquela maneira?

Deixa para lá, eu pensei. Não iria mais me preocupar com aquela menina. Tinha meus próprios problemas para me ocupar.

Apenas me desculparia quando tivesse uma oportunidade e isso seria tudo.

Anne, porém, não voltou no dia seguinte, nem no outro. Mesmo os comentários tendo diminuído e os ânimos tendo se acalmado, ela não voltou à escola. E eu não a vi por mais de uma semana.

Até que fui acordado no meio da noite pelo som de sinos. Havia alguma emergência. E pela urgência dos sinos devia ser um incêndio. Me vesti correndo, me despedi do meu pai e corri para ajudar.

Apesar da mente retrógrada da maioria das pessoas de nossa comunidade. Nos momentos de dificuldade nós nos uníamos.

Num incêndio nós ajudaríamos a apagar o fogo, a tirar as pessoas em perigo e juntos, reconstruiríamos o que precisasse. Era assim que as coisas eram, era isso que nos tornava uma comunidade.

My Anne with an EWhere stories live. Discover now