Min-D

By MyLightNovel

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MIN-D História por Lucas Ost Kurotsugu Revisão por Tany Isuzu Distribuição: My Light Novel - www.mylightnovel... More

Capítulo I
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII

Capítulo II

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By MyLightNovel

Pandemonium


No momento em que pousou os olhos no avaliador do governo, um homem delgado, sentado na frente da turma, ostentando um bigode louro hirsuto e um terno verde fluorescente com a insígnia Beta na gravata, Amber Kreyzer pressentiu que teria um ataque de pânico e estremeceu dos pés à cabeça. A pílula de Min-D subitamente ardeu através do tecido da calça, pesando como chumbo em seu bolso. Metade dos alunos ainda não haviam entrado.

          Ele andou até sua classe movendo uma perna depois da outra, exibindo movimentos desarticulados e irregulares, dignos dos robôs da primeira geração, que batiam contra as paredes e continuavam indo em frente.

          Assim que se sentou, pressionou o dedo no leitor da classe e ela iluminou-se, exibindo seu nome no topo do visor, e, embaixo, diversos cadernos digitais, cada um com o nome de uma matéria. No canto inferior direito, uma estrela dourada piscava, com uma contagem regressiva seguindo curso: 22:33. 22:32. 22:31... Era quanto tempo faltava para o exame ser iniciado.

          No quadro eletrônico atrás do Avaliador, lia-se a frase "Regulamento e Condições estão na pasta Aval0412".

          Amber olhou ao redor, e logo seu olhar encontrou o de Donnie. Ele estava duas mesas à esquerda dele, encostado na parede, sorrindo.

          Ele está confiante pra caramba, pensou Amber. Por algum motivo, isso o perturbou.

          Donnie se levantou e foi até ele, sentando-se na classe ainda não ocupada às suas costas. Então se inclinou para frente e sussurrou para Amber:

          — Quando faltar 10 minutos, me siga.

          Amber assentiu.

          Donnie voltou calmamente para sua classe, deu a volta em duas garotas que se paparicavam com beijinhos e esparramou-se em sua cadeira.

          Eles aguardaram.

          Quando o contador marcou 10 minutos, após um curto intervalo entre um e o outro, ambos se levantaram e saíram da sala. Donnie aparentemente calmo. Amber com coceiras pelo corpo todo. Talvez tenha sido só em sua cabeça, mas ele notou o olhar que o Avaliador pousou sobre ele antes de passar pela porta. Um olhar repleto de suspeita e hostilidade.

          Alguns rapazes lavavam as mãos na pia no momento em que os dois entraram no banheiro. Ignorando-os, Donnie entrou em um dos reservados, e Amber tratou de se enfiar no outro ao lado. Após alguns segundos, todos saíram e eles ficaram sozinhos. Depois de dar duas pancadinhas na divisória, o amigo lhe estendeu pela fresta de baixo uma pequena garrafa de água pela metade. Amber pegou-a rapidamente. A água estava um tanto quente, mas mal chegou a notar. Deslizou a mão para dentro do bolso e, com dedos torpes, encontrou a pílula, puxando-a para fora. Segurando-a contra a luz, ela realmente cintilava como um diamante. Do que será que ela é feita?, perguntou-se. Mas isso pouco importava. Seu coração agora se arremessava violentamente contra as costelas. Nas mãos, testa, costas, peito; o suor frio agora escorria por todos os poros de seu corpo.

          Eu realmente vou fazer isso? Tomar essa droga que já destruiu tantos? Será que sequer tenho alguma escolha? Talvez eu devesse jogá-la no vaso e puxar a descarga. Donnie não desconfiaria, eu acho. Mas amanhã, quando nossas notas forem liberadas, ele vai saber... A não ser que eu consiga alcançar à média, mas isso é impossível. Na primeira vez que realizei a AGDC, consegui 55 pontos, depois 49, então 44, e na última, apenas 41... Com 39 ou menos, serei levado à Área Épsilon, e com menos de 29, pra Zeta... Uniformes cinzas, longe de todos, sendo chamado de debiloide, me tornando cada vez mais estúpido, até parar de me importar e me tornar o primo de um vegetal. Meu deus, meu deus.

          Quando Amber olhou de novo para a pílula na palma de sua mão, ela se afigurava ainda mais brilhante do que antes, como se agora emanasse algo divino de seu interior, algo miraculoso, como se fosse a resposta para todas as perguntas, como se fosse a salvação, um fio de teia descendo até as profundezas do inferno para tirá-lo de lá. No segundo seguinte, ela deslizava pela sua traqueia, acompanhada de um jato de água quente, e, no entanto, incrivelmente refrescante.

          Voltando para a sala, Amber pensou ter notado o primeiro traço de medo em Donnie. Seus olhos jaziam esbugalhados, as mãos enterradas nos bolsos da bermuda, uma estria de suor delineando a nuca.

          — Vai dar tudo certo — declarou Donnie, mais para si mesmo do que para Amber, a voz algo rouca e cavernosa.

          — Sim.

*

          Quando, pela segunda vez, Amber entrou na sala, percebeu de imediato que todos já haviam tomado seus lugares. Mais impactante ainda, porém, eram os semblantes carregados de intensidade dos colegas. Ninguém conversava, ninguém sorria, apenas encaravam suas próprias mentes em tácita concentração.

          É sempre assim, disse consigo mesmo, todos se tornam outra pessoa diante da Avaliação. É algo que aprendemos desde os 12 anos; a importância vital dela, a maneira como, de uma hora para a outra, pode destruir ou elevar nossas vidas. Me pergunto se mais alguém aqui usou Min-D. Não me surpreenderia; a tensão é esmagadora. Realmente não agradeci Donnie o suficiente por ter conseguido ela pra mim. Ele é um verdadeiro amigo. Ficarei um pouco triste por ele ir embora pra Gama... não, ele merece, espero que consiga se tornar um espião telepata, é seu sonho desde que estudamos a história de Richard Boole, o herói psiônico que, usando a leitura de mentes, descobriu a maior conspiração contra nosso país e se infiltrou sozinho nas linhas inimigas, eliminando um por um seus líderes. Caramba, não consigo parar de pensar besteiras. Minha mente não sossega de jeito nenhum. Isso é outro efeito da droga? Talvez eu já esteja enlouquecendo, pensou com assombro, antes mesmo da avaliação começar.

          Quando, enfim, o marcador chegou a zero, instruções cruzaram a tela de sua mesa e, em seguida, a prova começou.

          Ao verificar as questões, por algum motivo, pareceu a Amber que a prova se tornava mais absurda a cada ano. Meu cérebro está regredindo?, se perguntou em angústia, ou será a droga já fazendo efeito, alterando as faculdades do meu cérebro?

          Não tinha como saber. A partir do momento em que ingerira a droga, qualquer tentativa de discernir o que era normal ou não, deixara de ser pertinente. Então aconteceu.

          Droga, o que é isso?

          A respiração de Amber rapidamente se tornou irregular e pesada, como se o ar fosse fumaça tóxica invadindo seus pulmões. Contorceu os dedos sobre a tela de sua mesa, então percebeu que a prova já estava em andamento há 15 minutos.

          Impossível.

         Ele olhou outra vez. As palavras na folha virtual de sua Avaliação jaziam em outra língua. Nunca na vida vira aquelas letras antes; uma mistura de kanjis com arábico, simplesmente inelegíveis.

          Tonto, um tanto perdido, ele olhou na direção de Donnie, e o viu numa máscara de foco intransponível, sorrindo misteriosamente, mergulhado, pelo que podia concluir, na mente das pessoas à sua volta.

          Ele conseguiu, murmurou para si. Pelo menos ele conseguiu.

          Suspirou, tremendamente aliviado.

          Então significa... que em breve vou enlouquecer. Entendo. Como esperado. He-he. Espero não ter nenhum episódio violento, não quero interromper a prova antes dele terminar. Mas... será que vou poder me controlar? Droga, não tinha pensado nisso. Preciso me acalmar, esperar o efeito passar. Pensando bem, não será tão ruim ir para Épsilon ou Zeta, desde que eu possa viver da minha própria maneira, será o bastante. Desde que eu continue são... continue são... Por que eu fiz isso?!

          Na esperança de se acalmar, ele fixou o olhar no perfil de Jill, sentada diagonalmente à sua frente. Ela estava debruçada, lendo os dados da prova e movendo agilmente os dedos afilados sobre a tela touchscreen. Concentrou-se nela, absorvendo seus detalhes: o queixo alinhado com a ponta de seu nariz, delicado e charmoso. As tranças rosadas. A curva de seus ombros sedosos...

          Como ela é linda, pensou. Sentia-se deprimido e grogue. Acho que nunca mais a verei. Não, talvez eu veja, quando estiver varrendo o chão em algum lugar de Alpha. Tudo bem, não será muito diferente de agora... Então, abruptamente, cortando seus pensamentos, palavras insinuaram-se em seu cérebro, palavras que não eram suas, mas sim captadas ao acaso no ar, tão difusas como ondas perdidas de uma estação longínqua, mas em um timbre que reconheceu de imediato: ...siderando a possibilidade de um astronauta alcançar a velocidade necessária para ativar os freios...

          Não havia dúvida, era a voz de Jill. Num gesto automático, inclinou-se para frente, concentrando-se no que ouvia.

          — ...tenho certeza que é a última alternativa, apenas nessa se encaixa. Sim. Certo, a próxima... Conecte os pontos seguindo a demonstração lógica do quadro 1... Ai, detesto essas... — Amber observou-a tocar os lábios e franzir as sobrancelhas. — Nossa, meus lábios parecem inchados. Acho que o Joe exagerou. Ele anda passando dos limites ultimamente, pegar na minha bunda é uma coisa, agora querer fazer com meus pais em casa já é demais... Droga, não devia estar pensando nisso. Foco, foco.

          O que Amber sentiu enquanto sondava os pensamentos de Jill foi uma mistura, em suas formas mais cruas e hediondas, de todos os tipos de emoções do espectro humano: embaraço, aversão, fascinação, terror, luxúria, cólera, alegria, e, acima de tudo, bombeando através de suas veias como energia pura, uma sensação inebriante de controle, poder e superioridade.

          Quanto mais focava Jill, mais fundo suas garras telepáticas perscrutavam. Ele leu suas emoções e medos, descobriu que ela temia elevadores panorâmicos; que tinha fantasias com o professor de geografia; que detestava os pais, por isso desejava ir para Gama com os tios. Mas por que os detestava? Ele concentrou-se e a imagem dela surgiu límpida diante de si. A escuridão espalhou-se como óleo dentro de seus olhos. Agora sua própria consciência parecia misturar-se à dela. Viu seus pais. Os dois brigavam pela casa. Havia um quadro com uma foto dos três sobre a lareira virtual. Eles sorriam no quadro, zombando da cena. No centro da sala, seu pai, vestindo um terno abarrotado, gritava para ele e para a mulher de cabelos loiros e nariz delicado ao seu lado, que ele sabia ser sua mãe.

          Então o homem foi para frente e empurrou-a contra a parede. O quadro desprendeu-se e quebrou-se contra o tapete. Amber gritou com o pai, as lágrimas escorrendo dos olhos, mas o homem estava alterado; podia sentir o hálito pungente queimando suas narinas, por isso foi até a mãe, escorada na lareira, a fim de tirá-la de casa. Ela, porém, deu-lhe um tapa no rosto. Amber ficou sem reação, sentindo-se profundamente só e desamparado entre os dois. Então o pai puxou-o pelos cabelos coloridos e de repente tudo se desvaneceu e ele estava de volta em sua mesa, na sala de aula, com seus colegas, ofegante.

          O relógio no canto de sua prova marcava 04:22:03. Ele perdera 38 minutos. Contudo, ele estava começando a entender. Quanto mais forte fosse a imagem mental da pessoa, mais nítidos os pensamentos se materializavam em sua mente. Até mesmo memórias estavam acessíveis!

          Na noite passada, ele lera que o efeito da Min-D durava aproximadamente 4 horas, atingindo o pico na metade e enfraquecendo a partir daí.

          Sentia-se eufórico, a mente funcionando em ininterrupta atividade produtiva. Ele não tinha muito tempo. Teria que arranjar alguma forma de comprar mais dessa droga depois. Por ora, a avaliação requeria sua total dedicação.

          Com o canto dos olhos, fitou discretamente o Avaliador, que descansava na confortável cadeira do professor, seu bigode loiro e pontudo um tanto desalinhado. Debruçou-se então sobre a mesa, mantendo, entre os ombros e cabeças de seus colegas, uma linha de visão perfeita do seu alvo. Em seguida, ele imaginou um fio saindo de sua mente, flutuando até o sujeito de terno verde fluorescente, e conectando-se à sua testa. Fechou os olhos, mantendo os traços dele desenhados na escuridão detrás de suas pálpebras, delineando cuidadosamente sua existência. Logo, fracos como suspiros, eles chegaram, e Amber, focando-se intensamente, auscultou os segredos do valoroso morador da Área Beta.

          — ...les maditos burocratas. Fazerem alguém como eu de Avaliador desse monte de esterco inútil... Qualquer imbecil do Departamento de Avaliação Gama poderia fazer isso. Diabos, até mesmo um dos vermes inferiores dos debiloides seria capaz de ficar aqui, sentado, observando esses pirralhos ranhentos e ouvindo esse barulho irritante de toc toc toc. Quando eu voltar...— Não, seus pensamentos não me interessam. Tenho que ir mais fundo, atrás das suas memórias, em particular, das referentes à Avaliação...

          Amber amplificou a conexão, focalizando seu objetivo em sua própria mente, fazendo-o refletir na do Avaliador, como num intrincado jogo de espelhos, imergindo gradualmente no denso limiar entre as recordações e o devaneio.

          Os aerocarros zumbiam acima de sua cabeça, pontilhando o céu feito moscas elétricas. Ele estava dentro de um tubo de vidro, 20 metros acima do nível do chão, caminhando ao lado de outros pedestres rumo à uma imponente estrutura de aço e vidro que se erguia no fim do trajeto.

          Não.

          O cenário derreteu, espalhando-se pelo vácuo, então elevou-se em ondas e solidificou-se novamente, em uma nova forma.

          Acomodado em seu minúsculo escritório no Departamento de Avaliação Beta, Amber traçava comandos com os dedos, interagindo com seu computador geração SX30, um pequeno retângulo do tamanho de uma caixa de fósforos, que, quando acionado, projetava para cima uma interface holográfica de alto processamento. Em sua escrivaninha, além de vários documentos em modo de exibição, repousava uma holofoto de seu filho, Joshua, o qual não via há alguns meses. Sentia-se melancólico e ligeiramente desconfortável, pois havia algum problema com o sistema de resfriamento de seu terno. Assim que chegasse em casa, jogaria-o fora.

          Ele estava revisando a AGDG Delta desse ano, que fora, como é de praxe, elaborada pelo departamento de Gama, assim como o de Alpha elaborava a dos betas e, não tendo ninguém acima, a dos próprios alphas.

          Mas, caramba, o DP de Gama realmente havia relaxado esse ano. Não, refletiu, de fato, relaxam em todos. Aqueles lá são indulgentes demais. Essa até que está bem decente. Na do ano passado, até meu rato de estimação, o Sr. Doçura, teria ido bem; quem sabe até se tornasse um Gama!

          Soltou um grasnado.

          Isso só prova como os deltas são quase tão estúpidos quanto os debiloides.

          Ele deu outra olhada na Avaliação, sorrindo para a incompetência dos deltas. Droga, sei as respostas sem sequer ter que olhar pro gabarito!

          Suando em seu terno defeituoso, Amber reclinou-se na cadeira de couro estofado e, exaurido pelo longo dia de trabalho, tirou a carteira de cigarros do bolso, depositou um entre os lábios e inclinou-se para frente, em sua classe na sala de aula. Olhou para as próprias mãos e depois para a prova, examinando as questões sob a nova luz de seus conhecimentos recém-adquiridos, ou, melhor dizendo, recém-roubados.

          Sim, ele possuía todas as respostas agora. Se desejasse, Gama estaria ao seu alcance. Poderia até receber uma nota perfeita... Bem, ponderou, não exageremos.

          Sorrindo languidamente, confiante como nunca esteve em toda sua vida, Amber Kreyzer assinalou as respostas sem ter lido o enunciado de questão alguma.

          Porém, quando ele chegou na questão número 19, algo estranho se sucedeu.

          Sua cabeça começou a latejar, e, ao mesmo tempo, alguém passou a sussurrar atrás dele. A pessoa deveria ter sido imediatamente expulsa da sala, porém, ninguém fez qualquer tipo de protesto. Sussurrava sem parar. Duas, três, quatro pessoas. Simplesmente falavam cada vez mais alto. Era como se todos os alunos do fundo estivessem confabulando entre si simultaneamente. Um coro de palavras incompreensíveis como o zumbido de uma colmeia de abelhas.

          Amber cerrou os punhos e os dentes, sentindo um ódio pegajoso envolvê-lo por completo, nublando seu discernimento.

          Desgraçados, calem a boca! Por que o Avaliador não faz nada? Toda essa gente... gritando ao mesmo tempo!

          Ele bateu o punho contra a mesa, então, feito uma onda, um turbilhão de vozes atingiu-o em cheio, varrendo seus próprios pensamentos para longe, afundando sua mente em caos pandemônico. Frases desconexas invadiram-no, ruídos como os de um velho rádio fora de sintonia arranhando as paredes do crânio: eu deveria ter aceitado o presente... talvez eu devesse marcar a alternativa C... que gravata ridícula... marque os pontos seguindo a lógica dos... meu pai deveria ter cancelado o retorno, mas aí... calcule a velocidade retrógrada baseando... três androides erguessem um totem... alguém me ajude... ela tem peitos tão redondos... talvez todos sejam androides, e eu... a porra da minha coxa está coçando... como se responde isso... detesto esse maldito trabalho... acho que sou debiloide... o décimo terceiro presidente comprometeu-se com... estou enlouquecendo... deve ser a letra A... não devia estar pensando nisso... ter ido no banheiro, agora é tarde... não deveria estar fumando essa hora... quem ligou a maldita TV... leite, leite, leite... será que ela sabe... preciso economizar o mês inteiro... ME... DEIXEM... EM... PAZ...!

          Amber soergueu a cabeça, tentando controlar a respiração, sentindo algo se contorcendo detrás de seus olhos. Ele vasculhou os arredores, desorientado, procurando Donnie. Ele o ajudaria. Ajudaria. Mas a sala oscilava para frente e para trás, como se estivesse inspirando e expirando na mesma cadência. Cabeças cheias de cabelos de todas as cores pulsando diante de seus olhos esbugalhados, todos vivos, todos conectados em uma cadeia de cabos transparentes, tênues, refulgentes feito cristais; um sistema de infinitas conexões se expandindo em um milhão de direções diferentes, atravessando os cérebros de todos na sala ao passo que convergiam para o seu próprio. Em relances de lucidez, distinguiu pulsações elétricas vibrando no ar, voando em velocidades incomensuráveis, como uma rede neural gigantesca engolfando o mundo inteiro. De súbito a sala toda se afastou de Amber, tornando-se um quadro ao lado de outros milhares quase idênticos, que flutuavam na escuridão inescrutável, todos abrangendo a mesma sala, mas com pequenas divergências.

          Ele não possuía mais um corpo, era somente uma consciência intangível e incorpórea explorando o desconhecido. Ao mirar o horizonte negro e infinito, ele vislumbrou a silhueta de um homem a observá-lo. Amber quis ir a seu encontro, porém, num movimento involuntário, ele flutuou por cima dos quadros, percebendo agora que não eram quadros, e sim áreas tridimensionais, limitadas umas pelas outras, com seres se movendo em seus interiores; milhões de Donnie's sentados em suas classes, assim como de Jill's e outros alunos. Quando tentou impor sua vontade e aproximar-se de um deles, algo o puxou para baixo, agarrando uma parte dele que não era física, e o arrastou de volta para sua sala de aula, sua cadeira e sua mesa.

          Haviam transcorrido 3 horas e 25 minutos desde o começo da Avaliação. Seus olhos eram pedaços de carvão em chamas, seu cérebro, feito de lava borbulhante, e os pensamentos, rochas que mergulhavam e faziam jorrar fogo líquido no interior do crânio.

         Amber se apoiou com as duas mãos nas extremidades da classe, trêmulo e enfraquecido pela experiência, esforçando-se para evitar desmoronar. Gotas de suor escorriam por seu rosto pálido e acumulavam-se na folha virtual de sua avaliação. No entanto, esse débil esforço foi o que bastou para extinguir a fagulha restante de sua frágil consciência. Logo, a realidade sucumbiu e fragmentou-se em poeira cinzenta, fazendo Amber Kreyzer despencar e despencar, afogando-se no limbo de sua mente.

*

          O barulho de chuva abafado; essa foi a primeira percepção a atravessar o véu de sua inconsciência. Era reconfortante. Recobrando gradativamente os sentidos os sentidos, ele percebeu que estava nu debaixo das cobertas, e, ao mesmo tempo, sentiu algo quente envolvendo sua mão. Era macio e suave como pequenas almofadas de seda.

          O que aconteceu?

          Num esforço penoso, ele abriu os olhos.

          Tranças rosadas que mal tocavam os ombros. Olhos aveludados que lhe abraçavam. Lábios que floresciam num sorriso. Jill estava sentada ao lado de sua cama, acariciando sua mão.

          Ao perceber que Amber havia acordado, ela debruçou-se sobre ele, derramando em seu peito lágrimas cujo calor ele jamais esqueceria.

          — Amber... Amber... Amber... — murmurava, roçando, a cada sílaba, seus lábios na pele do pescoço dele.

          Embaraçado e perdido, Amber envolveu-a em seus braços, sentindo insinuar-se através de seu coração uma felicidade com a qual jamais sonhou.

          — Estou aqui, estou aqui, Jill — disse ele, entregando-se de corpo e alma àquela paixão que por tanto tempo mantivera no calabouço de seu coração.

          Amber Kreyzer mergulhou seu rosto nos cabelos dela. Delineou com dedos torpes a curva de suas costas, puxando-a para si, descobrindo os contornos de seu corpo enquanto um desejo equivalente ao de cinco homens queimava os seus pensamentos. Enfim, contorcendo-se em irreprimível paixão, ele beijou-lhe a face e conectou seus lábios aos dela, fazendo jorrar escuridão para todos os lados até tudo desvanecer-se em negro nada.

          O barulho de chuva abafado; essa foi a primeira percepção a atravessar o véu de sua inconsciência. Era reconfortante. Em seguida, após parte de seus sentidos retornarem, sentiu os dedos dos pés formigando e uma coceira irritante na mão. Coçou-a debaixo das cobertas. Sentia-se deprimido pelo seu sonho, cuja memória ainda recordava em detalhes.

          Parecia tão real..., pensou, e então, com temerosa esperança, ergueu-se na cama e olhou ao redor.

          Não havia dúvida, estava em seu quarto. A escrivaninha de estudos num canto, o guarda-roupas em outro, um criado-mudo à cabeceira de sua cama. Móveis simplórios numa arrumação simplória. Entediou-se com a mera visão do lugar. As janelas jaziam fechadas, mas um leve cheiro de terra molhada alcançava suas narinas. Jill não estava ali. É claro que não. Não havia ninguém ali além dele. Sorriu amargamente consigo mesmo. Nisso, alguém abruptamente abriu a porta do quarto.

          Recortada contra a luz do corredor às suas costas, Jill ofegava com o rosto corado. Seus cabelos, seu rosto, suas roupas, ela estava encharcada da cabeça aos pés. A maquiagem borrara e agora escorria pelas bochechas.

          Amber titubeou, tão confuso quanto se sentira em seu sonho.

          — O que você... — Ele começou a dizer, mas foi interrompido quando ela precipitou-se em sua direção e abraçou-lhe com força.

          Jill soluçava, apertando-o cada vez mais forte. Amber podia sentir a frieza de sua pele molhada contra a dele. Gotículas de água desprendiam-se da roupa dela e pingavam sobre ele. A doçura de seu perfume, tão familiar a ele, envolvia-o mesclado ao agradável cheiro de terra molhada.

          Amber não correspondeu ao abraço. Seus braços permaneciam inertes ao lado do corpo. Não sentia felicidade, nem desejo, somente ódio.

          Afastou-a com um movimento brusco e, olhando em seus olhos, disse:

          — Você não é real.

          Ouvindo isso, a expressão dela oscilou entre a estupefação e a perplexidade. Em silêncio, ela fitou-o, as sobrancelhas franzidas num esforço para tentar entender. Segundos se passaram. De repente, como se saísse do estupor, ela disse, num tom lacrimoso:

          — Que diabos está dizendo?

          — Estou sonhando — respondeu Amber, apático.

          O tapa que ela lhe deu ressoou pelo quarto semivazio.

          — Então, ainda acha que está sonhando?! — gritou. — Você fica em coma por uma semana e essa é a primeira coisa que me diz?!

          Amber, esfregando a bochecha dolorida, observou a garota sentar-se na beirada da cama e chorar com o rosto entre as mãos. A dor, refletiu, especialmente a de seu coração, era por demais real para ser parte de um sonho.

          Sem pensar, ele abraçou-a. E continuou abraçando até as lágrimas se transformarem em soluços e, por fim, em um suave ofegar.

          — Me desculpe — balbuciou. Seu rosto estava apoiado nas costas dela, e ele podia escutar seu coração palpitando agitadamente. — Me desculpe, Jill.

          — Tudo bem.

          — Eu te amo. — As palavras escaparam de seus lábios. — Eu te amo, Jill.

          Ela virou-se e segurou seu rosto em mãos ainda úmidas de lágrimas. Os lábios rosados e quentes dela encontraram os dele, e, no instante seguinte, a escuridão desabou sobre o mundo.

          O barulho de chuva abafado; essa foi a primeira percepção a atravessar o véu de sua inconsciência. Era reconfortante. Quando seus sentidos despertaram, Amber sentiu uma desagradável dormência espalhando-se pelas costas. Com o canto dos olhos, ele notou uma figura ao pé de sua cama. Ela tinha tranças rosadas que mal tocavam os ombros. Olhos aveludados que lhe abraçavam. Lábios que floresciam em um sorriso.

          Ele sorriu, puxou as cobertas até a cabeça e afundou no travesseiro. Então um soluço escapou-lhe e, de súbito, começou a chorar enquanto gargalhava histericamente.

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