Capítulo I

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Capítulo I – Gesto Amigo

Escutem-me, tolos! Pois o Demônio ainda vive e espreita nossas sombras, enquanto seu reflexo ilegítimo galopa as ondulações do tempo, fixando-se no longínquo e invernal mundo dos não-homens, onde seus sonhos destroçados tornar-se-ão a ruína final e definitiva!

— trecho do Livro dos Amanhãs, escrito em 2043 por Kateb Alhazred. Dentre suas denominações estão: O Profeta Precognitivo, O Profeta Louco e O Segundo Alhazred.

***

          — Cara, você sabe o que tive de fazer pra conseguir elas?! — exclamou Donnie, indignado, seu cabelo espetado baixando na medida em que se agitava. — Todo o dinheiro que eu guardei nos últimos três anos foi pelo ralo, todas aquelas horas trabalhando e vomitando suor... e ainda fui obrigado a pedir favores de umas cinco pessoas!

          — Eu sei, eu sei... — disse Amber, movendo a perna para cima e para baixo num tique nervoso, enquanto encarava, apreensivo, as pílulas que reluziam sobre a mesinha de madeira entre eles. Seu rosto era pálido e um tanto banal. — Só não parece justo...

          Donnie ergueu as sobrancelhas carregadas, os olhos faiscantes.

          — Justo? Que se foda o justo! — ergueu a voz. — Se não passarmos nessa avaliação, vamos ser rebaixados, classificados como debiloides e obrigados a irmos para a Brigada Comunitária! Se está disposto a passar o resto da vida varrendo o chão ou servindo de burro de carga, não espere por mim!

          Os dois estavam no quarto de Donald Trable, ou Donnie, para os íntimos. O poderoso cheiro de roupa de baixo suja pairava opressivo no ar. O jovem estudante não era muito fã de organização, como atestavam as incontáveis peças de roupa amontoadas nos cantos, os copos e pratos sobre cada superfície plana e o estéreo desmontado no centro do quarto, feito a carcaça de um robô abandonado. Do outro lado da parede, pulsava, vindo do quarto do irmão mais velho de Donnie, o heavy droid rock dos Comets, a banda de androides do momento.

          — Mas se formos pegos... — resmungou baixinho Amber.

          — Porra! — interrompeu Donnie. — Como diabos eles saberiam? Nossa escola não tem recursos pra realizar testes de sangue, como as grandonas das Áreas Alpha e Beta. Tudo que precisamos é tirar uma nota razoável, sem nos excedermos. Desde que não chamemos a atenção, eles jamais desconfiaram. Não vê como é simples?!

          A realidade era que Donnie não precisava da droga para alcançar uma nota média; tinha ido muito bem nos anos retrasados. Seu objetivo, porém, era ingressar no Exército Superior, a fim de se tornar um espião telepata do governo. Para chegar nessa posição, teria que ser, no mínimo, um Gama. A bem da verdade, ele já planejava usar a Min-D desde que soube dela pelos di-jornais, só que não tão cedo. Seu plano era subir de classe somente no próximo ano, quando completasse 17, ficando, dessa forma, livre da avaliação por dois anos, tempo suficiente para subir alguns degraus na hierarquia do Exército. Mas agora isso já estava fora de cogitação. Assim que Amber lhe contou sobre seu medo de ser rebaixado, ele decidiu acelerar o processo e ajudá-lo como pudesse. Eram amigos desde sempre, e jamais o deixaria na mão. Ainda assim, a hesitação dele o irritava. Tinha feito tudo aquilo para ajudá-lo, e agora Amber estava dando para trás por pura covardia. Até parecia não entender o que o esperava se falhasse, droga!

          No fundo, Donnie também tinha outro motivo para insistir que o amigo tomasse a droga: ele estava com medo de usar sozinho — aterrorizado, para ser sincero —, mas não demonstraria isso de forma alguma.

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