Herança de Sombras - Livro 1...

By JulianaBizatto

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Nem toda inocência sobrevive ao destino. Mas todo segredo nasce com a promessa de um dia ser revelado. Há que... More

Luxuria
Apresentação
Prólogo
Capítulo I
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Capítulo XIV
Capítulo XV
Capítulo XVI
Capítulo XVII
Capítulo XVIII
Capítulo XIX
Capítulo XX
Capítulo XXI
Capítulo XXII
Capítulo XXIII
Capítulo XXIV
Capítulo XXV
Capítulo XXVI
Capítulo XXVII
Herança de Sombras

Capítulo II

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By JulianaBizatto


Apenas as gêmeas têm dezoito anos completos, não que isso tenha impedido Sy de dirigir até a escola todos os dias nos últimos dois anos, mas, hoje, com os dois carros, fazemos um comboio para a escola todos os dias. Os carros foram presentes de aniversário em janeiro último. Tia Abi, generosa como era, disse que elas podiam escolher o carro que quisessem. Após um longo tempo sofrendo em dúvida, elas, finalmente, fizeram suas escolhas, apesar de eu saber que, caso elas mudassem de ideia, tia Abi não negaria. Ela era capaz de comprar um carro novo sem elas sequer pedirem.

Nós sabíamos que o restante de nós não teria tanta sorte. Tia Leonora, se desse um carro para suas filhas, seria algo econômico e, com certeza, mais discreto e, muito provavelmente, mandaria escolher algo da garagem.

No meu aniversário de dezoito anos, eu ficarei satisfeita se minha mãe se lembrar dele.

Babi entrou no carro de Regi, Luci sentou no banco de carona de Sy, e eu e Mô podíamos escolher o Jeep ou ser esmagadas no suposto banco traseiro do Porsche. A Regi nunca descia a capota, algo a ver com os cabelos, como se o barco nunca tivesse arruinado qualquer penteado até então.

Escolha fácil. Em pé, segurando-me nas barras do Jeep, com o vento no rosto. Era irreprimível a vontade de levantar os olhos para o céu nublado, abrir os braços, e deixar o sorriso se espalhar pelo rosto, ao sentir a umidade do ar entrando pelos braços e pelas minhas roupas. Eu amo morar à beira do mar, ou melhor, dentro dele.

O caminho até a escola não é longo, mas se fosse feito a pé seria uma penúria. A escola se situa na cidade velha, a mais ou menos umas dez quadras da beira-mar. Ano passado, Sy estava com a Range Rover de sete lugares, e, sempre que chegávamos, havia um burburinho; se era apenas pelo carro era outra história.

Ser uma Hoffer é também como ser uma celebridade, tudo o que você faz, fala ou usa será assunto na próxima esquina. Sempre foi assim, foi com nossas mães, avós, bisavós, trisavós e assim por diante, desde que os Hoffer se estabeleceram nessa praia afastada entre o Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos, há quase 300 anos, junto com os primeiros colonizadores açorianos.

Mô estava sentada, recostada às costas do banco do motorista, as pernas esticadas até a beirada do chassi, entretida com seu celular, pois, apesar de existir uma antena na ilha, o sinal não é bom e a internet muito menos. Assim, quando está no continente, ela aproveita cada segundo com seu smartphone de conta ilimitada, mandando mensagens para, sinceramente, qualquer um. Ela diz que, assim, se sente parte da civilização.

O meu celular estava ronronando havia algum tempo no bolso traseiro da minha calça. Eu não precisava pegá-lo para saber quem era, e não sabia o que responderia caso atendesse.

Pensei mais uma vez nos intrusos no posto de gasolina e, considerando que não havia mais turistas ou surfistas – a previsão de tempo acabou com as esperanças de qualquer um deles pelas próximas semanas – restava apenas uma possibilidade: outro grupo de pesquisadores interessados no clima local, no cemitério de barcos ou ainda nos faróis assombrados.

Há quem ache nosso clima pitoresco e temperamental fascinante, suas lendas criativas e que deviam, a todo custo, ser preservadas como patrimônio cultural. Eu poderia dizer que era inútil. Tormento sempre teve tempestades em setembro, desde antes dos colonizadores, e não havia nada mágico em casas destelhadas e pessoas desabrigadas, mas foi graças às peculiaridades de Tormento que meu pai veio parar aqui, com outros historiadores, durante uma pesquisa de faculdade.

Antes que pudesse pensar em outras possibilidades, Sy desligou o carro no pequeno estacionamento diagonal protegido por árvores frondosas de troncos largos, em frente à escola.

A casa branca e a escola foram construídas no mesmo período e compartilham do mesmo estilo arquitetônico, só que com uma diferença: muitas das janelas da escola eram feitas de vitrais, dando um aspecto mais sacro que de ensino ao local.

É uma construção em U, sendo o primeiro andar dedicado aos anos iniciais e laboratórios, além da biblioteca na extrema direita, com ligação independente com o segundo andar, o qual, por sua vez, é dedicado aos anos finais. Entre as duas alas há um gramado extenso, com caminhos de pedra que levam a uma fonte de água ao estilo barroco de anjos ao centro. Uma vez todo ele atravessado, ao fundo há o campo de futebol precário, com uma arquibancada lamentável e o seu gramado esburacado.

Além da entrada principal, há saídas laterais. A saída do lado esquerdo leva ao ginásio de esportes coberto, e se você seguir a trilha, ladeada de árvores centenárias e robustas, acabará nas piscinas cobertas, inutilizadas há anos. A saída da direita dá para uma escada íngreme, porém larga, de pedras desiguais e escuras, e esta, por sua vez, ao refeitório, que é algo como uma lanchonete a céu aberto, a que chamamos, carinhosamente, de cantina. Conta com algumas mesas cobertas, e muitas outras descobertas, espalhadas pelo gramado e pelo cimento, entre as paredes da escola e o verde que a circunda.

Não era frequente alunos irem dirigindo para a escola, pois, além da falta de habilitação – é uma vergonha que no Brasil se atinja a maioridade apenas aos dezoito anos – e da falta de dinheiro, a maioria dos moradores está na cidade velha, e podia fazer o trajeto a pé ou era trazido pelos pais.

Os poucos carros estacionados são de professores, carros populares ou latas-velhas como o opalão de Tui, um dos poucos alunos com carro além de nós. Ao avistar uma Dodge Ham preta, tive outro momento de desequilíbrio. Só podia ser a mesma que vi no posto de gasolina, a não ser que estivesse acontecendo um encontro desses monstrengos na cidade e a Mô não soubesse, o que era impossível.

Eu estava tão absorta em pensamentos que mal percebi, enquanto caminhava em direção à escola, a mão que procurava a minha. Quando me virei, não sei o que esperava, mas, mesmo assim, fiquei surpresa ao vê-lo, moreno e esguio com o sorriso de orelha a orelha. Ele me puxou e enterrou sua boca na minha, num beijo furioso e íntimo. Senti o sangue chegar as minhas maçãs do rosto em ondas gradativamente mais fortes.

Os sons que se seguiram eram de zombaria, típicos de crianças de doze anos, como era a mentalidade dos amigos de Martin, e particularmente verdade em se tratando da loira espalhafatosa – Sy é claro – que gritava: "Vão prum motel", seguido de sua risada quase maléfica.

Era óbvio que estávamos dando um show contra minha vontade.

Desfiz-me, o mais rápido que pude, de seus braços, mas, em dado o momento, meus maiores temores se concretizavam. Ele ainda mantinha suas mãos nos meus quadris, como prevendo a minha intenção de ganhar ainda mais espaço entre nós.

— Por que tu não atendeste ao telefone ou respondeste minhas mensagens? Eu estou tentando falar contigo desde ontem!

— Tu sabes que isso não é uma tarefa simples na ilha.

Eu odiava esse tom acusatório e possessivo, como se fosse minha obrigação atendê-lo ao primeiro chamado. Suas mãos se fecharam ainda mais contra meu corpo, e aproximou seu rosto do meu com um sorriso malicioso brincando em seus lábios.

— Não tem problema, eu tenho tudo planejado para hoje.

A nuvem de depressão ia ficando mais densa sobre mim. Respondi com outro sorriso amarelo. Iria colecioná-los ao fim do dia, pelo visto.

Graças a todas as minhas estrelinhas, os muitos seguidores de Martin o cercaram e exigiam detalhes da viagem. Aproveitei a oportunidade e, mal disfarçando meu alívio, disse um "Até depois" e, antes que ele pudesse responder, eu estava do lado de Mô, logo atrás do restante das primas, na calçada que seguia a escadaria e a porta principal do Colégio Menotti Garibaldi.

Martin, meu namorado há sei-lá-quanto-tempo, mas sei que há muitos anos, desde a infância, estivera viajando durante as férias, a primeira vez que nos separamos desde que estamos juntos, que é, até onde eu sei, sempre. Primeiro, ele e sua família foram em um cruzeiro, depois compromissos políticos e, por último, visitar parentes longínquos, o que também não deixava de ser campanha politiqueira.

Para minha surpresa, o nosso afastamento não me fez mal, pelo contrário, saboreei a liberdade como alguém recepciona um copo d'água no deserto, ou melhor, como um míope ao colocar os óculos pela primeira vez, e esse era exatamente o meu problema...

Antigamente, eu adorava estar com o Martin. Ele é o garoto mais doce que eu já conheci, e não me baseio na fração masculina dos quase cinco mil tormentosos para afirmar isso. Sy sempre inventava festas em Pelotas e até em Rio Grande e colecionava admiradores o suficiente para fazer comparações, e se fosse necessário ainda, havia os namorados de Regi ou de Luci, e as paixões relâmpago de Mô. Eu sabia que Martin era precioso, e que ele realmente me amava.

Martin é lindo, com seus 1,85m, pele morena, cabelos escuros e olhos castanhos chocolate. Eu estava consciente de que se eu o largasse, ele não ficaria sozinho por uma semana sequer, pois, além de atraente, ele era filho de uma das famílias mais tradicionais do Rio Grande do Sul, cujos membros possuíam, inclusive, postos políticos de alto escalão em Brasília e, obviamente, era uma família rica.

Mas nosso relacionamento mudou conforme fomos amadurecendo. A pressão por sexo tinha atingido níveis alarmantes no início do verão, e não sei bem ao certo por qual motivo, acabei cedendo numa noite antes do natal.

Por mais que eu fingisse que nada havia mudado, eu sabia a verdade: sexo muda tudo. Todo carinho, todo beijo, todo abraço tinha apenas uma finalidade para Martin, e isso realmente me irritava. Eu gostava mais quando ainda éramos virgens, andando de mãos dadas, trocando abraços carinhosos e beijos inocentes, mas agora tudo tinha urgência, tinha mil mãos, e eu me via fugindo dele tanto quanto podia. Talvez eu não estivesse pronta, afinal de contas.

Apesar da minha desatenção inata, consegui perceber que hoje eu não era a única aborrecida. Luci acabara de avistar Rodolfo e passara sem cumprimentá-lo, deliberadamente.

— Luci, se acalma, o Rodolfo tem razão. Contratar um DJ internacional para uma festa volta às aulas parece um pouco exagerado. – Conciliava Mô, tentando alcançar a irmã, que foi abraçada por uma Sy que a afastava com uma língua maldosa a postos.

Rodolfo é namorado de Luci, eles estão juntos praticamente desde que ele chegou em Tormento, foi amor à primeira vista, e nunca mais se desgrudaram. Isso não quer dizer que eles vivam em um mar de rosas, pelo contrário, eles estão sempre em pé de guerra. Na minha opinião, não tem como ser diferente com um carioca metido à besta como ele. Eu não sei o que ela ou Tui, que também se fez amizade com Rodolfo instantaneamente a sua chegada, viam nele.

— Capaz! Com uma festa assim, viria muita gente de fora da cidade! – Regi concordava com Luci, rolando os olhos ao ignorar a implicância entre Sy e Mô.

— E, principalmente, homens. O que eles podem desejar mais que as garotas Hoffer e uma boa música, hein "bitches"? – dizia Sy maliciosamente, completando com sua risada escandalosa.

— Não seria de todo mal conhecer umas carinhas novas. – Disse Babi, de repente corando.

— Ba, até a virgem está assanhadinha! – Sy nunca deixava de pegar no pé da caçula. Barbara, com seus quinze aninhos. Apesar da semelhança física com a rainha do gelo, não consegue perder essa visão cor-de-rosa da vida. Sy sempre usa uma expressão para descrevê-la que lhe serve como uma luva: Babi é amarga de tão doce. Ela nunca eleva a voz, nunca se irrita, está sempre sorrindo. Ela é a própria Branca de Neve loira, ou qualquer uma dessas princesas que veem beleza em tudo e nunca deixam de mostrar os dentes.

— Sinceramente, eu estou com a Mô nessa, já não basta gastarmos rios de dinheiro nas festas de lua cheia? Um bom DJ local seria mais que suficiente.

— Mas é óbvio que você vai concordar com a Mô! Novidade! – Regi disse, sem paciência para mim.

— Até eu sabia que você ia dizer isso. – Completou Babi rindo.

— E eu que tu irias dizer isso. – Respondi na mesma moeda. Babi sempre concordava com Regi, ela tinha algo como uma adoração por ela. E eu não acho que concorde com Mô tanto assim.

— Querem parar vocês duas? Eu que tenho um namorado mal-agradecido, todas as festas dele foram épicas! Por que eu lhes pergunto? Por causa dessa pessoinha que se escraviza para deixar tudo perfeito! E o que eu ganho? "Ah Luci, você está exagerando de novo, gata!" – Luci disse imitando perfeitamente o sotaque arrastado de Rodolfo, fazendo todas nós rirmos ao mesmo tempo.

— E o lual do Tui? Vamos? – Mô perguntou ao enxugar as lágrimas no canto dos seus olhos verde azulados quando paramos de rir. E sem querer ela olhou para Sy, porque, por mais que nos alfinetássemos, e por mais que, se uma não quisesse, as outras não fossem, quem decidia era a Sy.

Se ela não quisesse ir, ninguém a convenceria do contrário, mas se ela quisesse e alguém não, ela infernizaria a vida da pobrezinha até a coitada mudar de ideia. Pela primeira vez na vida, eu desejei que Sy não tivesse uma vida social ávida.

Se eu explicasse o porquê de eu não querer ir, talvez ela se compadecesse, mas, para isso, eu tinha de saber o que eu queria, e o que eu queria era não falar sobre o assunto, principalmente diante de tantos olhos curiosos que seguiam a nossa chegada.

Eu nem tinha tido tempo de pensar muito quando Sy respondeu:

— Que dúvida, claro que vamos!

Outro assunto estava encerrado, mesmo porque todas queriam ir. Todas sempre queriam ir a todo e qualquer evento possível.

— Ba, parece que a Déia tingiu o cabelo de loiro de novo. - Disse Mô ao ler as notícias quentinhas que recebia no seu celular - Será que ela não percebeu ainda que nunca será uma Hoffer? Vou dizer uma coisa, essa garota é a mais triste sósia da Regi que conheci.

— Eu já vi piores. – Disse Sy olhando acusadoramente para Babi, e dividindo uma piscada com Luci, que retribuía com um sorriso cúmplice para a prima.

— Para tudo! – Disse uma Mô dramática, abrindo os braços e fazendo-nos quase cair.

— O que foi criatura? – Reclamou Sy ajeitando seu decote avantajado bagunçado com a parada súbita. O seu ajeitar não tinha nada a ver com esconder seu busto de tamanho 48, mas sim com tornar suas meninas ainda mais desejáveis.

— Teremos dois alunos novos, um no terceiro e um no segundo, e eu aposto que são aqueles dois. Uau, é impressão minha ou o termômetro da escola acabou de subir alguns graus?

Meus olhos baixos se levantaram de súbito e encontraram um casal na base das escadas que davam para a porta principal da escola. Eles estavam claramente desconfortáveis por estarem em tamanha evidência. As pessoas nem se importavam em olhar discretamente, havia até quem apontasse.

Ele tinha cabelos castanho-claros, pouco abaixo do queixo, alto, mas não tanto quanto Martin. A garota ao seu lado, alguns centímetros mais baixa, era tão magra quanto eu, porém muito pálida, talvez mais ainda pela situação incômoda. Ela parecia prestes a vomitar.

— Garoto, prepare-se para ser "atormentado"! – Sy estalou seus dedos, seguindo em direção aos recém-chegados.

— Mas por alguém que faça isso direito – completou Regi para nós, com um sorriso diabólico, indo no encalço da irmã para dar início a mais uma rixa entre elas.

As gêmeas receberam o garoto com seus sorrisos mais deslumbrantes, e sem querer ou não, Sy excluiu a garota, dando as costas para ela ao se pendurar em um dos braços dele.

Num ato de compaixão típico de Mô, quem recebeu a garota foi ela. Luci, eu e Babi estávamos logo atrás. Em minha opinião, Luci devia se interpor entre as gêmeas, em vez de pajear a recém-chegada. Luci, muitas vezes, era a única capaz de impedir que uma faísca entre as duas se transformasse numa fogueira. Luci milagrosamente conseguia despertar solidariedade em Sy, mas a relação dela com Regi era igualmente especial, uma amizade sem necessidade de palavras, parecido com o que eu e Mô temos.

— Olá, eu sou a Mônica, mas pode me chamar de Mô. Essa é a Samantha, mas pode chamá-la de Sam e essa é a minha irmã Lucille, mas, se você a chamar assim, ninguém vai saber de quem você esta falando, porque ela é conhecida como Luci ou como a namorada do Rodolfo, e essa de bochechas rosadas é a Babi!

A Mô pretendia ser receptiva e acolhedora, mas seu falatório ininterrupto e os olhos esbugalhados a tornaram intimidadora sem intenção.

— Pode me chamar só de Luci, por favor. – Luci aceitou o cumprimento de mão molenga e sem vida da morena, chacoalhando-a com vontade, deixando a garota ainda mais pálida. Ao soltá-la, abriu os braços num gesto receptivo, e, por um momento, pensei que ela fosse abraçar a recém-chegada, mas ela se contentou em dizer: - Bem-vindos a Tor!

— Eu sou a Tamisa, a gente acabou de se mudar, nosso pai veio trabalhar na madeireira – disse ela, ainda com dificuldade de nos retribuir o olhar, numa voz fina e baixa, ajeitando, mais uma vez, uma mecha atrás de sua orelha.

— Então, você está em casa, nossa mãe deve ser a chefe do seu pai! – Mô parecia ter descoberto um tesouro, como se essa coincidência não fosse absurdamente frequente e, enroscando seu braço no de Tamisa, puxou-a corredor à frente.

— Onde vocês estão morando? – Babi pulou na frente da garota, fechando o cerco ao redor dela, junto com Mô e Luci.

— Você está em qual série?

— De onde vocês vieram?

— Vocês estão morando onde?

Luci, Mô e Babi nem davam a oportunidade de a garota responder, suas vozes se emendando uma a outra. Será que elas não percebiam que estavam fazendo um interrogatório com a menina? Ela parecia assustada.

Antes que elas recomeçassem, eu resolvi intervir. Passei minha mão por entre elas e busquei a de Tamisa, resgatando-a daquela roleta russa de perguntas. As três deram de ombros, trocando olhares interrogativos, mas nos deixaram em paz, enquanto eu a encaminhava para o segundo andar apressadamente.

— Eu e a Mô estamos no segundo, eu lhe mostro onde é.

Talvez a garota estivesse no terceiro e o irmão no segundo, mas se fosse um jogo, eu já tinha feito minhas apostas, e como ela me seguiu sem objeções, eu devia estar certa.

— Obrigada.

Ela parecia aliviada por sair dali e me seguir no segundo andar. Tinha cabelos muito escuros e longos, contrastando com sua pele pálida, os olhos eram cor de mel. O rosto longilíneo, desenhado com traços leves, dava-lhe um aspecto de frágil. Ela não era nem bonita nem feia, tinha um rosto normal, um pouco mais alta do que eu, altura Hoffer. Vestia jeans, camiseta da escola sem personalização e tênis, ou seja, um traje normal se você não mora em Tor. Ela parecia perceber essa sutil diferença, disparando olhares a todos que passavam.

— Não se preocupe, eles têm mais medo de você do que você deles - disse eu, em tom de confidência, e, dessa vez, ela riu.

— Por que tem de ser aterrorizante toda vez? – Ela perguntou isso novamente para seus pés.

— Vocês se mudam bastante? – Não queria parecer muito intrometida, mas o silêncio estava constrangedor depois que havíamos deixado as três para trás.

— Toda vez que meu pai tem uma boa proposta, então, sim. Várias vezes ao ano. – disse ela, soltando um suspiro.

"Sempre há quem queira sair, como também quem quer ficar no mesmo lugar." Pensei comigo mesma.

— Deve ser um saco. – Mô, de repente, se materializou ao nosso lado e, num ato de ternura, pareceu sentir empatia pela garota, segurando ao máximo sua língua hiperativa, que em geral teria emendado mais umas cinco perguntas.

— Às vezes, é um saco, mas outras é bem legal, conhecer pessoas diferentes. – Sua voz parecia sorrir.

— Começar tudo de novo... – Suspirei.

O olhar das duas encontrou o meu, que as evitou. Eu tinha falado isso em voz alta? Onde tinha parado meu filtro hoje? Aquele que, convenientemente, remove todas as asneiras que surgem na minha cabeça antes de passar pela minha boca? Deve ter tirado férias junto com o de Sy.

Chegando à sala, ela se sentou ao nosso lado, e Mô manteve sua cruzada por respostas, uma vez que a menina começou a se mostrar mais falante. Mô e eu temos alguns meses de diferença, e sempre estudamos juntas. Babi está no primeiro ano, e as gêmeas, com Luci, Rodolfo, Tui e Martin fazem parte da turma de veteranos.

O que Mô não esperava é que a recém-chegada tivesse tantas perguntas quanto ela, assim que sua inibição começou a se esvair. Quando chegou a vez de explicar sobre a ilha Hoffer, foi quase a metade do primeiro tempo.

Tamisa achava incrível uma família morar numa ilha isolada e, ainda mais, que houvesse apenas mulheres. Ela manifestou preocupação com nossa integridade, mas Mô explicou, pacientemente, sobre os seguranças que circulam em suas lanchas ao redor das casas em tempo integral.

Eu os apelidei de fantasmas, porque eu nunca os via, nem sabia seus nomes ou rostos. Eles nunca ficavam tempo suficiente para podermos conhecê-los. Vozinha preferia que eles fossem temporários, ela tem suas paranoias. Contudo, ela me garantia que eles estavam ali, mesmo que eu não os visse. Prova disso é que nunca havíamos sido assaltadas, embora, algumas vezes, tivéssemos sido surpreendidas por turistas, o que levava a uma demissão em massa da equipe de segurança.

Ela ficou morrendo de curiosidade sobre a casa branca, como todos ficam, e Mô prometeu que, na próxima festa, no mês seguinte, ela poderia ir e ver com seus próprios olhos. Mô acabou a convidando também para o luau e para a festa do Rodolfo, e podia se dizer que, pela hora do intervalo, elas eram melhores amigas. Era incrível como uma frivolidade dessas parecia tão interessante para Tami, é como se ela nunca tivesse tido amigas, e talvez fosse esse o caso, já que ela se mudava bastante. Claro que eu sempre esquecia que nem todos têm uma trupe de primas e uma irmã a sua disposição para qualquer clima e eventualidade.

Mesmo com a novidade da chegada de Tamisa, eu não deixei de pensar em Martin. Ele tinha dito que tinha planos, e minhas ideias ficaram envoltas nessa frase a maior parte do tempo. O que ele não sabia é que eu também tinha.

Eu estava com a minha maçã na mochila, e assim que o sino tocasse, desceria correndo em direção às piscinas e passaria os próximos vinte minutos escondida. Eu sei que o plano era fraco, e cheio de possíveis falhas, mas eu não estava muito decidida sobre o que fazer com a minha vida amorosa, eu precisava de mais tempo!

Assim que terminou a aula, saí o mais rápido que pude, deixando Mô falando sozinha, mas assim que passei pela porta, uma barreira me jogou na direção contrária, e, antes que eu me estatelasse no chão, um par de mãos da mesma direção da porta me puxava pelos ombros.

— Mais devagar, garotinha.

Eu já ia me desculpar, quando encontrei aqueles olhos. Algo neles me prendeu, e eu havia me esquecido como se falava ou respirava.

Foi Mô que me salvou, para variar.

— Sam, tudo bem? Você se machucou?

Livrei-me de suas mãos e, principalmente, da intensidade dos seus olhos, realinhando meus pensamentos. Ele não ofereceu resistência e me largou prontamente, apesar de que sentia seus olhos cravados nas minhas costas, ao acenar afirmativamente para minha melhor amiga.

Foi enquanto ajeitava a minha camiseta que percebi que tinha perdido a maçã. E mesmo antes, na hora da fuga, eu já dera pela falta da minha edição surrada do Alquimista, que deveria ainda estar no mesmo bolso lateral no qual sempre estava, dentro da mochila de uma alça só, pendurada na minha cadeira.

Não foi só isso o que notei. Havia, agora, outros olhos em mim, e não eram mais aqueles olhos intensos com os quais eu esbarrara na porta.

Senti o gosto da derrota subir pela minha garganta, como se eu pudesse antecipar o tiro de misericórdia. Eu já sabia que Martin estaria a minha frente, assim que virasse a cabeça.

E assim ele estava.

Seriam os planos dele, em vez dos meus.

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