Capítulo XIV

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As minhas divagações levaram boa parte da tarde e, sem querer, acabei adormecendo com o barulho do mar. Acordei com a noite escura, com nuvens encobrindo a lua, preenchendo tudo ao meu redor; as luzes do jardim tinham se acendido, mas, ainda assim, tudo eram sombras. As nuvens ameaçadoras não trouxeram tempestade, mas também não foram embora. Mais uma vez, o tempo era pouco confiável por aqui.

Não foi isso que tinha me acordado, mas o zunido do celular novo que Martin comprara para mim. Fora a única coisa que eu tinha levado comigo para ali, além da maçã. O número era desconhecido, mas todos os números eram desconhecidos. Eu só tinha dois números salvos, o de Mô e o de Martin. Não era o número de Tui, que eu tinha de lembrar de salvar na primeira oportunidade.

Atendi meio receosa.

— Alô.

— Então, já vou avisando que só vou me desculpar por ter te prendido na lavanderia, por mais nada.

Meu coração parou, minha respiração parou, nem um músculo se mexia, muito menos o da minha boca. Ele nunca ia desistir, pelo visto. Respirei fundo umas duas vezes antes de responder.

— Eu estou impressionada que a palavra desculpa esteja no seu vocabulário.

— Foi adicionada recentemente. – Sua voz rouca parecia sorrir, e as borboletas congeladas de surpresa sorriam de volta.

— Ligou só para isso? Para quase se desculpar?

— Também. Eu fiquei meio surpreso com a guerra que você começou ontem. Se foi para chamar a minha atenção, conseguiu.

— Desde quando tudo gira ao seu redor, garoto? – Droga, foi tão óbvio assim?

— Só as coisas que você faz para me impressionar, e devo admitir que está conseguindo.

As borboletas estavam quase saindo pela minha garganta, mas tinha algo que não saía da minha cabeça.

— Como você conseguiu meu número?

— Um passarinho me contou.

Só havia duas pessoas que sabiam esse número, e uma delas, certamente, jamais o daria para Benjamin.

— Um passarinho chamado Mônica Hoffer?

— Isso é uma coisa que não consigo entender sobre vocês. Vocês não têm pais? Por que só usam o sobrenome das mães?

— Não se faça de desentendido, Benjamin Belli. Nós usamos o sobrenome de nossos pais, está na certidão de nascimento, mas ninguém nos conhece assim.

— E eles não ficam chateados?

— Eles estão mortos.

Eu não disse isso com ressentimento, mas com humor. Se os mortos se importassem com os vivos, não seria por algo tão pequeno.

— Mas, antes disso?

— Acho que não. — Eu não podia ter certeza. Não conheci os pais das minhas primas, eles morreram quando ainda éramos bebês, então as palavras saíram mais fracas do que eu pretendia. — Esse é um dos ônus de se casar com uma Hoffer, eu acho.

O silêncio se prolongava e começou a ficar estranho. Talvez não tivéssemos muito assunto em comum, apenas química, apesar de não poder ter absoluta certeza disso também.

— Eu achei que fosse te ver aqui na vila hoje. As ondas estavam ótimas, do jeito que você gosta.

— Como sabe o jeito que eu gosto?

Herança de Sombras - Livro 1 - LuxúriaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora