Capítulo II

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Apenas as gêmeas têm dezoito anos completos, não que isso tenha impedido Sy de dirigir até a escola todos os dias nos últimos dois anos, mas, hoje, com os dois carros, fazemos um comboio para a escola todos os dias. Os carros foram presentes de aniversário em janeiro último. Tia Abi, generosa como era, disse que elas podiam escolher o carro que quisessem. Após um longo tempo sofrendo em dúvida, elas, finalmente, fizeram suas escolhas, apesar de eu saber que, caso elas mudassem de ideia, tia Abi não negaria. Ela era capaz de comprar um carro novo sem elas sequer pedirem.

Nós sabíamos que o restante de nós não teria tanta sorte. Tia Leonora, se desse um carro para suas filhas, seria algo econômico e, com certeza, mais discreto e, muito provavelmente, mandaria escolher algo da garagem.

No meu aniversário de dezoito anos, eu ficarei satisfeita se minha mãe se lembrar dele.

Babi entrou no carro de Regi, Luci sentou no banco de carona de Sy, e eu e Mô podíamos escolher o Jeep ou ser esmagadas no suposto banco traseiro do Porsche. A Regi nunca descia a capota, algo a ver com os cabelos, como se o barco nunca tivesse arruinado qualquer penteado até então.

Escolha fácil. Em pé, segurando-me nas barras do Jeep, com o vento no rosto. Era irreprimível a vontade de levantar os olhos para o céu nublado, abrir os braços, e deixar o sorriso se espalhar pelo rosto, ao sentir a umidade do ar entrando pelos braços e pelas minhas roupas. Eu amo morar à beira do mar, ou melhor, dentro dele.

O caminho até a escola não é longo, mas se fosse feito a pé seria uma penúria. A escola se situa na cidade velha, a mais ou menos umas dez quadras da beira-mar. Ano passado, Sy estava com a Range Rover de sete lugares, e, sempre que chegávamos, havia um burburinho; se era apenas pelo carro era outra história.

Ser uma Hoffer é também como ser uma celebridade, tudo o que você faz, fala ou usa será assunto na próxima esquina. Sempre foi assim, foi com nossas mães, avós, bisavós, trisavós e assim por diante, desde que os Hoffer se estabeleceram nessa praia afastada entre o Oceano Atlântico e a Lagoa dos Patos, há quase 300 anos, junto com os primeiros colonizadores açorianos.

Mô estava sentada, recostada às costas do banco do motorista, as pernas esticadas até a beirada do chassi, entretida com seu celular, pois, apesar de existir uma antena na ilha, o sinal não é bom e a internet muito menos. Assim, quando está no continente, ela aproveita cada segundo com seu smartphone de conta ilimitada, mandando mensagens para, sinceramente, qualquer um. Ela diz que, assim, se sente parte da civilização.

O meu celular estava ronronando havia algum tempo no bolso traseiro da minha calça. Eu não precisava pegá-lo para saber quem era, e não sabia o que responderia caso atendesse.

Pensei mais uma vez nos intrusos no posto de gasolina e, considerando que não havia mais turistas ou surfistas – a previsão de tempo acabou com as esperanças de qualquer um deles pelas próximas semanas – restava apenas uma possibilidade: outro grupo de pesquisadores interessados no clima local, no cemitério de barcos ou ainda nos faróis assombrados.

Há quem ache nosso clima pitoresco e temperamental fascinante, suas lendas criativas e que deviam, a todo custo, ser preservadas como patrimônio cultural. Eu poderia dizer que era inútil. Tormento sempre teve tempestades em setembro, desde antes dos colonizadores, e não havia nada mágico em casas destelhadas e pessoas desabrigadas, mas foi graças às peculiaridades de Tormento que meu pai veio parar aqui, com outros historiadores, durante uma pesquisa de faculdade.

Antes que pudesse pensar em outras possibilidades, Sy desligou o carro no pequeno estacionamento diagonal protegido por árvores frondosas de troncos largos, em frente à escola.

Herança de Sombras - Livro 1 - LuxúriaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora