C A P Í T U L O 01
APARÊNCIAS
- Vamos lá Harry, são só mais vinte flexões para chegares às cem e bates o teu recorde. – o Matt bateu palmas ao meu lado e a muito custo continuei as flexões. A minha respiração já estava demasiado alterada e parecia que o meu coração ia a qualquer momento saltar-me do peito. Deixei sair uma lufada de ar e quando ele começou a contar em contagem decrescente quando as dez chegaram, apressei-me a terminar de realizar as flexões, até que depois da última deixei-me cair no chão com um enorme suspiro, que possivelmente se ouviu do outro lado do ginásio. – Boa miúdo.
Desde que o Matt me levou com ele, que a sua fixação em treinar-me todos os dias foi aumentando. Comecei com oito anos, um ou dois dias depois dele me ter levado com ele. Aos treze anos eu já tinha abdominais definidos e claramente, eu não tinha aspeto de um miúdo de treze anos. Não que isso me desagradasse, porque até me dava aquele ar de superioridade, e sendo um miúdo educado pelo Matt, eu obviamente que tinha sempre miúdas atrás de mim. Mas isso parou de acontecer e o meu corpo teve uma enorme regressão quando aos quinze anos fui para uma espécie de instituição para miúdos problemáticos e fiquei um ano sem qualquer treino.
O mais curioso, foi que fui mandado pelo Matt para lá, quando ele sempre me disse para ser arrogante, violento, frio, rude, idiota e insensível com as pessoas. Claro que eu não melhorei, acabei por ficar mais revoltado e violento lá dentro, principalmente por ter de partilhar uma casa com outros miúdos que eu não conhecia de lado nenhum e sem poder estar com o meu melhor amigo a fazer merda atrás de merda. Não era que o Matt soubesse muito aquilo que eu e o Niall fazíamos, mas ele tinha perfeita noção que de vez em quando nós assaltávamos algumas lojas por pura diversão. No entanto isso acabou quando tínhamos dezoito anos, para sempre.
Levantei-me e passei uma mão na testa, removendo parte do suor. Logo passaram-me uma toalha e uma garrafa de água. Abri a mesma e numa questão de dois minutos bebi tudo o que estava lá dentro, limpando de seguida a cara à toalha branca.
- Agora vamos dar uns tiros lá fora para ver se ainda tens pontaria certeira. – ele riu-se provocadoramente e eu só ganhei vontade de lhe socar a cara toda e atira-lo da janela abaixo.
- Porquê? Já faz um tempo desde a última vez. Eu não quero fazê-lo. – respondi no mesmo tom frio e rude que ele sempre utilizou comigo, como se eu fosse um marginal. O que na verdade, foi no que ele me tornou.
- Tu não queres fazer, mas vais fazê-lo! – sem qualquer sorriso ou ironia disso, ele disse, ou melhor, ordenou como sempre o fez. – Segues as minhas ordens e tens o que queres.
Sempre posso atirar em ti. Pensei quando ele virou costas e acenou com uma mão para eu o seguir. Acabei por ir atrás deve, embora contrariado. Quando pisamos o solo exterior, a chuva preencheu o meu campo de visão e interiormente agradeci por isso.
- Pronto, está a chover, agora posso ir embora. – dei dois passos para trás, e quando estava a preparar-me para ir embora, a voz dele travou-me.
- Nem penses Harry! Vestes esse casaco e essa capa da chuva e estás apto. Eu vou fazer o mesmo.
Fiquei a olhar para ele com desprezo no olhar. A minha furia aumentou quando o vi pegar nas pistolas, como se aquilo me começa-se a remeter para os dois anos anteriores. Mas realmente eu nem sequer pude chegar a pensar muito bem nisso, porque ele olhou para mim e falou alto.
- Mexe-te!
Decidi não lhe responder nem fazer nada que o irritasse, mesmo que a minha vontade tenha sido essa. Vesti o casaco pesado e quente, e peguei na capa de chuva, pondo-a por cima das minhas roupas. Coloquei também o capuz e logo recebi a arma.
A chuva começou a cair contra nós os dois e pareceu que aumentou quando paramos nos locais corretos para atingir o alvo. Fiquei a olhar em frente, começando a lembrar-me daquele dia aterrorizante, mas mais uma vez a voz insuportável do Matt fez-me esquecer de tudo.
Eu nunca o suportei. Ele pode-me ter criado desde os oito anos e ter-me dado tudo. Mas ele tirou-me ainda mais do que o que me deu. O dinheiro que ele me deu nunca substituiu nada. Eu só senti raiva dele, principalmente por ele me ter tornado naquele miúdo violento e insensível. E de me ter feito acreditar naquilo que me destruiu por completo, mesmo que eu nunca o tenha mostrado. Em parte eu tornei-me ainda mais insolente depois daquilo que fiz, mesmo que eu não tenha visto no momento. Eu lembro-me de fechar os olhos e depois de os ter aberto eu vi uma enorme poça de sangue. Eu lembro-me de ter corrido até ela. Eu fiquei também cheio de sangue. A minha roupa e as minhas mãos. Depois eu ouvi a polícia, mas o Matt já me tinha levado dali para fora.
Ele sempre soube que eu o odiava. Ele sentia o mesmo. Aliás, ele odiava toda a gente, assim como eu. Acho que as únicas pessoas que eu não consegui odiar naquele negócio eram os homens. Não que gostasse deles. Realmente eu nunca gostei de ninguém.
- Vamos, tu primeiro. Quero ver se ainda sabes acertar no alvo. – o corpo dele recuou, talvez com medo que eu pudesse disparar nele, o que caracterizava a situação como irónica.
Posicionei bem os pés no chão. Estendi o braço direito com a arma na mão e coloquei a esquerda na mesma posição, colocando o dedo indicador em cima do indicador direito e depois o polegar atrás do direito. Fechei os olhos por uns segundos, e depois de os voltar a abrir, disparei. Só que não acertei no ponto certo, e isso de certa forma irritou o Matt.
- Foda-se Harry. – ele empurrou-me e pisou o lugar onde eu estava. – Aprende de uma vez por todas como é que se dispara em condições.
Olhei para ele e numa questão de segundos, a bala atingiu o ponto vermelho no centro. Desviei o olhar para o homem e ele soprou a boca da arma, mostrando-se superior.
- Dispara outra vez. Se não acertares voltas a fazer mais cem flexões, à chuva!
Não que aquilo me tivesse preocupado. Porque eu nunca fiz tudo o que o Matt me mandou, mesmo que isso me tivesse obrigado a umas boas horas de treino extra para me castigar. E pode parecer simples de mais chegar ao ginásio e fazer flexões e pegar em pesos, mas realmente sob a rigidez dele, tudo se tornava ainda mais difícil, porque o Matt quando queria conseguia ser um filho da mãe, pior do que eu, que apenas me tornei como ele, num nível abaixo.
Voltei a posicionar-me no local correto e sem mais demoras disparei. Para minha felicidade e para infelicidade do Matt, eu consegui acertar no alvo. Decidi atirar-lhe a arma para os braços e virei costas caminhando novamente para o interior do ginásio. Ouvi os seus passos atrás de mim.
- Quero que vás lá baixo dar o almoço aos homens e depois ficas dispensado, por hoje.
- Eu não sou teu criado. – respondi com os dentes cerrados. – Por isso eu não tenho de obedecer às tuas ordens.
- Se quiseres sempre podes ser usado para uma próxima experiência. – e foi com aquela ameaça que eu fui pelas escadas até aos fundos, o que na realidade não dava para entender o seu aspeto de cave, devido à sua normalidade para fazer perceber que era uma casa normal.
Passei primeiro pela dispensa e peguei nas caixas da comida pré cozinhada. Quando fui à cozinha aqueci-as no microondas e depois fui para o quarto. Assim que abri a porta encontrei o Mike, o Scott e o Carl, cada um na sua cama. O meu olhar pousou, como em todas outras vezes no Carl, que estava deitado de barriga para cima a olhar para cima, mais precisamente para a fotografia que durante quatro anos ele sempre olhou.
- Podem vir almoçar. – falei monotonamente e eles levantaram-se os três ao mesmo tempo, como se estivessem comandados, tal e qual como robots. O que na realidade, não era propriamente mentira, uma vez que o Matt sempre usou a hipnose para controlar qualquer coisa que não conseguia com a violência.
Eles passaram à minha frente e foram para a cozinha. Fui atrás deles e vi-os sentarem-se nos bancos em frente à bancada. Eu fiz o mesmo e sentei-me à beira do Carl, que quando começou a comer, colocou a fotografia à beira do prato dele. Pela primeira vez consegui olhar para a fotografia e vi um rapaz e uma rapariga, talvez com idades entre os dez e os quinze.
Não que eu em alguma vez sentisse pena deles. Eu realmente nunca senti nada em relação às outras pessoas a não ser ódio. Mas, para aqueles três homens inocentes, eu conseguia deixar o ódio de lado e não ser mal educado com eles, como sempre fui com todas as outras pessoas. Porque eles não eram como o Matt. Eles só lá estavam obrigados, e eram usados em experiências.
- Quem são estes? – perguntei apontado para a fotografia.
- São os meus filhos. – ele falou baixo, a cabeça a encarar o prato.
Eu não disse nada, apenas por não saber o que dizer.
- Eu tenho saudades deles. Quer dizer, eu não os vejo há quatro anos, tudo por causa daquele filho da mãe do Matt, que me trouxe para aqui e eu ainda não percebi como.
Com a hipnose. Pensei. O Matt fez isso com todos. Eu lembro-me dele trazer o Carl, ele tinha trinta e oito anos na altura, porque foi o mais recente. Ele hipnotizou-o nos primeiros dias. Depois ele ficou demasiado envolvido na situação para passar por isso novamente, embora por vezes tenha sido necessário, e tenha sido eu a fazê-la.
- Tu é que me podias ajudar. Tu podias tirar-me daqui. – curiosa e milagrosamente ele olhou para mim. Mas eu desviei logo o olhar e senti-me enrijecer quando ouvi a palavra ajudar.
- Eu não ajudo ninguém Carl. Eu não te posso ajudar. – levantei-me pronto para sair.
- Vai haver alguma experiência hoje? – ele perguntou. – Eu não posso espetar mais agulhas no meu braço, eu estou cheio de picadelas e dói-me demasiado. Além disso eu sei o que pode causar. – eu lembro-me do Matt ter ficado completamente orgulhoso quando percebeu que o Carl era enfermeiro, porque assim podia ajudar mais especificamente.
- Hoje não. Mas um dia destes o Matt vai voltar a fazê-las.
- Podias mata-lo. – eu já estava a caminhar para sair e ir para minha casa, mas eu fiquei quieto no mesmo local, sem olhar para trás. – Eu sei o que aconteceu há dois anos atrás, eu vi.
- Foi um acidente. – elevei o tom e falei de forma rude.
- Não deixaste de o fazer. – ele contrapôs.
- Mas eu não o queria fazer. – cerrei os punhos. – Agora come, e nunca mais voltes a tocar nesse assunto. – subi as escadas e depois desapareci em direção à minha casa, conduzindo a uma velocidade um pouco elevada e perigosa.