14| Escuridão

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C A P Í T U L O 14

ESCURIDÃO

Eu tinha uma alma negra. Mas nunca na vida eu poderia ser um anjo. Eu vivia num inferno, assim como todas as pessoas à minha volta, mas eu nunca poderia entrar no de alguém e acalmar as chamas. Só que eu entrei sem me aperceber, e mais tarde eu caí nas minhas próprias chamas, e nas dos outros também.

O meu silêncio foi prolongado depois dela falar. Fiquei a olhar para ela por um longo momento. Os olhos dela mexiam-se sucessivamente. Parecia que estava a analisar cada traço do meu rosto. Eu estava apenas a olhar para os olhos dela. Eles eram tão familiares. E eu estava a ficar louco por não saber de onde eles pertenciam. Cada vez me consumia mais não os perceber corretamente. Estava tudo à minha frente e eu não vi. Mas quando vi, escondi. Escondi por puro egoísmo, com medo que me tirassem algo, quando no fim me tiraram tudo.

Olhei em frente sem saber o que dizer ou fazer. Acabei por sentir a cama a mexer-se. Quando olhei para o lado ela estava a levantar-se e a guardar o caderno na mala. Continuei a observa-la e percebi que aqueles gestos eram para ela ir embora, como ela acabou por confirmar.

- Eu tenho de ir embora. – ela estava estranha. Eu não a conhecia muito bem, mas ela estava estranha, muito estranha.

- Espera. – levantei-me. – Conta-me outra vez o que aconteceu.

Havia ali alguma coisa que me estava a deixar confuso. Ninguém a ia abordar na rua sem razão alguma para lhe dizer algo tão ameaçador. Havia mais do que isso, e eu era o culpado.

- Um homem agarrou-me quando eu estava a ir embora do trabalho. – a maneira como ela mexia as mãos era sinal de que estava ainda assustada, apesar de controlar a voz para não o mostrar. – Ele arrastou-me e depois disse para eu ter cuidado porque ele tinha aquilo que eu precisava e que eu nunca mais ia ver. Disse também que eu estava a brincar com o fogo e que me ia queimar. – fez uma pausa, respirou fundo e depois levantou-se, começando a andar para trás e para a frente. – Foi tudo muito estranho.

Brincar com o fogo era brincar com o Matt. Era ele. Eu sabia. Ele sabia. Ele tinha-a visto comigo e andava atrás dela. Era sempre assim. Foi por coisas assim que aconteceu aquilo ao Niall. E não que a Ava fosse alguém importante, ao menos era o que eu pensava naquele tempo, mas ele realmente estava a tentar fazer com que as coisas fossem favoráveis para ele. Mas, se eu soubesse. Se eu soubesse que não era só isso. Oh, provamos do nosso egoísmo a toda a hora.

Olhei para a minha secretária e depois levantei-me. Peguei num bloco de folhas e num lápis. Voltei para a beira dela e entreguei-lhe os materiais. Ela ficou a olhar para mim com uma certa confusão.

- Desenha. – disse e depois sentei-me à beira dela. – Desenha o homem.

- Mas eu mal o vi. – ela queixou-se encolhendo os ombros.

- Não interessa. – eu estava a ficar cansado e insano. Cansado pelos jogos do Matt e insano por não conseguir perceber as coisas. – Desenha o que viste, nem que sejam só os olhos.

Ela encostou-se à parede e colocou o caderno em cima das pernas, começando a fazer leves traços de seguida. Ia virando o caderno. Carregava no lápis e depois assombreava com os dedos. Observei-a o tempo todo. A concentração dela ela algo bastante admirável. Era como se ela esquecesse todo o mundo à volta dela.

Ela deve ter-se apercebido que eu a estava a observar, porque olhou para mim e revirou os olhos. Depois entregou-me o bloco de folhas e eu olhei para o que ela tinha desenhado.

- É tudo o que me lembro. – nada me era familiar naqueles olhos. Mas claramente que aquilo só podia ter a ver com o Matt. Tudo há minha volta tinha.

Ele queria afasta-la. Mesmo ela não tendo nenhum impacto na minha vida ele queria isso. Tudo porque ele queria que eu obedecesse às ordens dele. Mas eu não o ia fazer. Só que... eu estava a pôr a vida dela em risco, e acabei por coloca-la mesmo no extremo. Deixa-la entre a vida e a morte. Deixei que ela controlasse tudo aquilo que eu pensava, ou melhor, que eu nem sequer sabia que existia. Mas, seria só por isso que o Matt queria afasta-la? Eu estava tão cego, e as coisas estavam mesmo à minha frente.

- Sabes alguma coisa? – olhei para ela e respirei fundo. – Tu sabes não é? Tu sabes. É por isso que tu não querias que eu saísse daqui no outro dia. – ela levantou-se. – O que é que tu queres?

Não disse nada. Não podia dizer-lhe nada. O que é que eu lhe ia dizer? "Eu só trabalho para um homem que gere um grande negócio de tráfico de droga, que rapta homens para experiências. E não te preocupes. Tudo o que te está a acontecer é só mesmo para não te aproximares ou então também serás um alvo a abater.". Só me apetecia dar cabo do Matt. Enterra-lo vivo. Fazer-lhe trinta por uma linha. Qualquer coisa que o deixasse no pior estado possível.

- Porque é que andas sempre atrás de mim? – ela estava com medo de mim. Eu podia ver isso de longe.

- Eu não ando sempre atrás de ti. Tu é que estás sempre nos mesmos lugares que eu. – olhei para ela com os olhos semicerrados.

- O que é que tu queres?

- Nada. – levantei-me. – Só te estou a fazer um favor de salvar o teu rabo de certas situações e tu ainda me acusas. – levantei as mãos. – Acredita que se não te tivesse ajudado não estarias aqui.

- Então explica-me o que está a acontecer. – ela puxou-me pelo braço, o que me fez olhar para ela.

- Não dá para explicar. – soltei-me do aperto dela.

- Como não?

Foda-se. Ela deixava-me louco.

- Concentra-te na tua vida e deixa que eu trato do resto. – saí do quarto e ela veio atrás de mim. – Acredita, tu não queres mesmo saber o que está a acontecer.

- E se eu quiser? – virei-me para trás. Fi-lo com demasiada força e o facto dela estar muito próxima de mim fez com que eu batesse contra ela. Fiquei com os olhos pesos nos dela.

Não havia maneira de sair dali. Ela era como um íman que atrai-a tudo de mau à volta dela. Começando em mim. Eu era o maior intoxicante para ela.

- Não andes sozinha. É perigoso. – não sei o que se estava a passar. Mas tudo o que eu dizia saía num sussurro. Como se só eu quisesse que ela ouvisse.

Depois afastei-me. Mas no momento onde me ia virar para descer as escadas, o meu braço embarrou em algo que caiu ao chão, ouvindo-se vidro a partir. Olhei para o chão e vi uma moldura. Quando me baixei para pegar nela ela fê-lo também e antes de pegar no objeto que estava em dois, pegou antes na fotografia.

- Quem é este? – olhei para as mãos dela. Era eu e o Niall quando ele fez dezoito anos. Estávamos os dois com copos vermelhos a sorrir para a câmara. Senti alguma raiva, frustração e acima de tudo uma enorme vontade de rasgar o papel.

- Era o meu melhor amigo.




Callous | h.sOnde as histórias ganham vida. Descobre agora