62| Enfrentar

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C A P Í T U L O 62

E N F R E N T A R

Apesar de todos aqueles acontecimentos, não havia uma forma das coisas mudarem. Nem eu nem a situação. Era assim que estava, era assim que ia ficar. Parecia ser realmente necessário. Afinal de contas eu estava sempre a rejeitar, e daquela vez eu era o rejeitado. De uma maneira ou de outra acabamos por provar das nossas próprias ações e ser alvo dos problemas que inconscientemente queremos que os outros tenham.

Deixei o fumo sair pelos meus lábios, formando uma nuvem cinzenta no ar. Inalei aquele ar tóxico, dando de seguida mais um travo no cigarro. Aquilo era um calmante, ao menos por poucos segundos. Fazia-me sentir mais leve.

Eram sete da manhã e não havia maneira de conseguir dormir. A minha cama não era confortável e nenhuma posição a tornava em tal. Os meus pensamentos eram traiçoeiros, e uma vez acordado, já não conseguia fechar os olhos para voltar a ser levado pelo inconsciente. Depois de abrir a janela do meu quarto encontrei no telhado o lugar mais confortável, ainda que as telhas magoassem a parte traseira do corpo. Vesti um casaco básico preto com capuz e depois de o colocar na cabeça, subi a janela e sentei-me nas telhas alaranjadas. O vento era forte. A caminhar porta fora para entrar na primavera, o inverno ainda estava bem presente, ainda que sem a neve para chatear.

Eu não podia avançar. Não podia avançar para a Ava, porque ela não deixava. Já não havia aquela transparência que antes me fazia ir sem vir. Ela tinha-se protegido da pior maneira possível. Ela olhava mas já não deixava. Então isso significava que nunca nada poderia voltar a ser como dantes. Porque já não era eu que a controlava, era ela que me controlava a mim.

Apaguei o cigarro pressionando-o contra a telha. Pensei em tirar outro, mas achei por bem não o fazer. Era demasiado cedo para me começar a intoxicar e o sabor na minha boca já estava demasiado intenso.

Quando mexi a cabeça para poder olhar em frente, o meu olhar cruzou-se com um vulto preto a passar na rua de uma forma demasiado rápida. Aquilo despertou-me, fazendo-me acordar para o que estava a acontecer. Levantei-me. Algo não estava certo. Eu sentia. Decidi então saltar do telhado. Apoiei as mãos no chão escuro quando desci, e apressei o passo.

Aqueles dias no Maine estavam a ser demasiado calmos, especialmente depois do aviso do Matt. Ele não iria baixar os braços, e já tinha passado demasiados dias. Dias esses emergidos numa paz. Não no seu sentido literal, porque tudo estava um inferno. Mas uma paz relativamente àquela pessoa asquerosa. Mas estaria eu a fazer bem em ir correr atrás de algo que eu nem sabia se era real? Quer dizer, meses atrás a minha cabeça estava uma completa confusão. Eu via coisas. Às vezes elas eram reais e outras vezes elas não eram. Mas depois o Niall apareceu. Então por ordem de ideias o Matt iria aparecer.

Continuei a caminhar. Se fosse realmente o Matt eu tinha de o destruir de imediato. Já não aguentava o mal que ele fazia, especialmente aquilo que ele tinha feito com a Ava e aquilo que estava para vir. Podia não ser fisicamente, mas iria ser psicologicamente. Era o que ele fazia comigo. O que ele sempre fez comigo.

Todo aquele percurso levou-me à arrecadação. Já não havia maneira de ver quem quer que fosse. Mas daquela maneira só poderia ser o Matt, que com as suas técnicas tinha desaparecido. Porém aquilo não iria durar muito mais tempo. A fome de o destruir estava a voltar a habitar em mim.

- Quem está aí? – ouvi uma voz abafada. Vinha de dentro da arrecadação. Levei a mão ao puxador para ver quem era. A porta abriu-se e de dentro revelou-se o Niall.

Durante alguns momentos ficamos a olhar um para o outro. Não falava com ele desde a grande notícia. Tão grande que eu nem sequer conseguia digerir.

- Ouvi barulho, pensei que estivesse aqui alguém. – acabei por dizer, inventando.

- Hmm, sou só eu. – ele respondeu.

Encolhi os ombros. Se já era difícil encara-lo quando me lembrava do sucedido, então depois do anuncio dele e da namorada, as coisas estavam ainda mais confusas para mim. Ele queria que eu fosse testemunha. Juntamente com a Ava. Ele queria que eu assinasse um papel e para aquilo eu tinha de aceitar aquela mudança de vida. Ele ia embora. Mas ia de vez.

- Pois, já compreendi. – respondi de volta.

Continuei a olhar para ele durante alguns momentos. Até lhe podia contar sobre as minhas suspeitas, porém eu tinha-lhe dito que já não precisava da ajuda dele, então não valia a pena. Mesmo se o voltasse a incluir nos meus planos, ele iria sempre corresponder às exigências e pedidos da namorada. E aquilo eu não conseguia compreender.

Acabei então por virar costas, pronto para voltar ao quarto. Porém ele falou, fazendo com que eu parasse.

- Harry. – voltei a virar-me para ele. – Eu preciso que respondas àquilo que te perguntei.

A maneira como ele falou fez-me logo perceber sobre o que ele estava a falar. O casamento. Era difícil consentir com aquilo. Tudo porque eu não conseguia aceitar a felicidade alheia. Ou o mundo era um inferno para todos, ou então eu e a minha revolta levávamos tudo à frente.

- Com tantas pessoas à tua volta não consigo compreender porque me vieste pedir isso a mim. – naquele momento já éramos diferentes um do outro. As minhas prioridades eram doentias, enquanto que as dele eram estáveis e duradouras.

- Eu não sei. Talvez porque ainda te consigo ver como um amigo. – a ironia na resposta foi óbvia. Abanei a cabeça. – Eu preciso mesmo disto.

- Tu precisas disso porque queres ver-te livre daqui. A tua namorada quer. Diz antes assim. Ao menos és sincero. E não compreendo como é que numa altura destas tu vens com esse tipo de conversas. A sério, eu não compreendo. Faz-me confusão.

- São objetivos de vida.

- Que eu não tenho. Eu já sei, não precisas de repetir. – levantei as mãos. – Eu agora tenho coisas para fazer. Por isso tem um bom dia.

Comecei a caminhar. Queria voltar para o quarto e não pensar em nada daquilo. Se o Matt estivesse mesmo ali eu tinha mais com que me preocupar.

- O casamento é daqui a um mês. – ele disse, provavelmente com a intenção de eu fazer alguma coisa. Porém eu continuei a minha caminhada para o quarto.

Trepei a parede, apoiando as minhas mãos no parapeito da janela. Quando estava a preparar para entrar dentro do quarto, a porta do mesmo foi aberta e a Ava apareceu. Olhei-a com alguma interrogação. Não compreendia a presença dela ali. Tínhamos conseguido falar, mas só para eu lhe poder explicar a situação, porque mesmo com aquilo ela não iria mudar a sua maneira de pensar. Eu estava queimado e nada iria mudar.

Foi quando ela levantou a cara, que eu reparei que ela não estava nas melhores condições. As lágrimas escorriam-lhe pela face e um ar desesperado pairava nela.

- O que se passa? – depois de colocar os dois pés no chão, levantei-me e fui ter com ela. A respiração era um pouco descontrolada, fazendo-me questionar o que se estaria a passar, especialmente àquelas horas da manhã. – Ava.

Os olhos dela percorreram o quarto, parando depois nos meus olhos. Olhei-a intensamente. Já não me lembrava da última vez que aquilo tinha acontecido. Ela evitava-me de todas as maneiras e eu só a queria. Estava tudo ao contrário e nada iria voltar a ser o que era.

- O Matt... – ela disse baixo e a tremer. As suas mãos encontraram as minhas, deixando um papel nas mesmas. Porém ela não me largou. – Ele está de volta.


Callous | h.sOnde as histórias ganham vida. Descobre agora