Mosteiro da Graça
Adrian estava no pátio treinando arco e flecha com o alvo em uma placa de madeira, com alguns bruxos treinando com as espadas a sua volta, quando Dimitri aproxima-se.
- Você não vai arrumar seus pertences para partirmos?
- Eu não vou - avisa Adrian atirando uma flecha no alvo e voltando-se para o outro.
- O Rei convocou todos os cavaleiros para se organizarem, pois partiremos amanhã ao raiar do sol.
- Eu sei, mas não vou voltar com vocês.
- Por que?
- Porque a luta dos bruxos contra a Igreja ainda não acabou, vou ficar para ajudá-los e também não vou sair do lado de Freya.
- Nesse caso, eu também ficarei.
- É melhor que você volte para a Corte com os outros.
- Eu também quero ajudar os bruxos.
- Eu sei, mas tem alguém te esperando no Castelo Real e que você precisa proteger.
- Você está falando da Charlotte?
- Sim, você deveria se preocupar com o bem-estar dela.
- Por que está me dizendo isso?
- Porque a notícia de que o Rei é um bruxo logo chegará aos nobres na Corte, não dá para saber como eles vão reagir a isso, além de que agora os bruxos também sabem que Sua Majestade era aliado da Igreja, não pense que eles vão deixar isso quieto. Freya não vai deixar isso quieto, então é melhor que você esteja ao lado de Charlotte e preparado para qualquer coisa que vier a acontecer.
- Você tem razão, mas ainda não entendo porque parece se preocupar com minha esposa.
- O Conde de Salinas, infelizmente, é meu pai, portanto, Charlotte é minha irmã. - Dimitri olha incrédulo para o amigo. - Eu não me importo com o Conde Ricardo. Ter descoberto que ele é meu pai não vai fazer diferença nenhuma na minha vida, até por que sou bastardo, mas Charlotte é uma boa pessoa e merece que você cuide bem dela.
- Você e Charlotte são irmãos - diz Dimitri tentando digerir a informação.
- Foi Charlotte, inclusive, quem descobriu por causa desse anel que pertenceu ao pai dela. - Adrian mostra o anel em seu dedo anelar da mão direita.
- Realmente esse é o brasão da família do Conde de Salinas.
- Por isso te peço que volte ao Castelo Real e a proteja do que estiver por vir, o próprio Rei não é confiável.
- Eu farei isso.
Dimitri dá um tapinha nas costas de Adrian em despedida e afasta-se dando de encontro com Beatrice saindo da capela.
- Bea, estou voltando para o Castelo Real junto aos outros cavaleiros e à Sua Graça.
- Você precisa ir?
- Eu queria muito ficar, mas é meu dever como cavaleiro atender as ordens de Sua Majestade, além de que Charlotte está à minha espera.
- Já perdermos a Cat e eu nem pude dar o último adeus a ela. Tenho medo de não ver você de novo; o único irmão que me restou.
- Vamos nos ver de novo sim. - Ele abraça a irmã. - Quando tudo isso acabar, nos reencontraremos, até lá cuide-se, por favor.
- Você também, Dim. - Ela retribui o abraço enlaçando-o fortemente pela cintura.
Algumas lágrimas teimosas rolam pelo rosto de Beatrice. Dimitri afasta-se um pouco da irmã e seca, com o polegar, as lágrimas na bochecha dela.
- Não chore, apenas estou voltando para casa.
- Mas ainda estamos lidando com conflitos entre os bruxos e a Igreja. E agora que sabemos que o Rei é um bruxo, temo que esses conflitos cheguem a Corte.
- Eu que me preocupo por você querer ficar aqui, onde é o centro desses conflitos.
- Mas é aqui que meu marido está e é ao lado dele que vou ficar. Já fui deserdada por nosso pai, então minha família se resume ao Oliver e a você.
- Estou confiando que ele vai te manter segura e longe de perigo.
- Com certeza ele fará isso.
Dimitri beija Beatrice no rosto e ambos caminham lado a lado em direção a ala do refeitório. No entanto, o cavaleiro vê, a distância, Freya saindo sozinha do mosteiro por uma fresta na muralha para a Floresta da Lua.
- Com licença - diz ele afastando-se da irmã, que também vira Freya, e partindo atrás da outra.
O cavaleiro sai pela mesma fresta e a segue de longe, até que a vê parando por entre as árvores e ajoelhando-se sobre as folhagens com as mãos espalmadas no chão. Dimitri esconde-se atrás de uma das árvores enquanto a observava de costas.
Uma leve brisa começa a soprar ao redor de Freya, que estava com os olhos cerrados, fazendo os cabelos pretos dela esvoaçarem. As folhas do chão, aos poucos, levantam-se formando um redemoinho ao redor da bruxa.
Dimitri continuava observando tudo em silêncio, enquanto a brisa ganhava força transformando-se em uma ventania.
Freya finca as unhas no solo agarrando-se a terra para tentar controlar o ar a sua volta. Sua respiração começa a ficar entrecortada e ela sente seus olhos arderem fazendo, involuntariamente, lágrimas escorrerem por seu rosto. Sangue começa a verter de seu nariz manchando seus lábios e queixo.
O cavaleiro percebendo a velocidade do vento aumentando, corre na direção de Freya, mas ao encostar no redemoinho de folhas, seu corpo é repelido para longe estatelando-se de costas no chão. Ele arfa de dor sentindo o ar lhe faltar dos pulmões.
Freya, que mantinha os olhos fechados, não conseguindo mais conter o vento que a rodeava, lança os braços esticados para frente arremessando o ar na direção das árvores, que como um furacão, derruba algumas pelo caminho até perder a força.
A bruxa ofegante com a respiração curta, apoia os punhos no chão curvando o tronco para a frente e abrindo os olhos percebendo que sua vista estava um pouco embaçada, mas, lentamente, vai voltando ao normal. O cavaleiro arrasta-se até Freya colocando uma das mãos nas costas dela, que o encara aturdida ao, enfim, dar-se conta da presença dele.
- Você está bem? - preocupa-se ele ajoelhado ao lado dela.
Freya, ainda tentando recuperar o fôlego e sentindo seu coração acelerado, apenas faz um sinal afirmativo com a cabeça piscando os olhos demoradamente.
- O que foi que houve aqui? - indaga ele limpando o sangue do rosto dela com a manga de sua túnica.
- Estou tentando controlar a minha magia - responde ela virando o rosto para a floresta e fitando as árvores tombadas -, mas, pelo visto, falhei miseravelmente.
- Você tem que ser mais cuidadosa - diz ele seguindo o olhar dela -, senão pode acabar se machucando.
- Na verdade, eu machuquei você - diz ela voltando sua atenção para ele olhando-o preocupada.
- Eu estou bem. - Ele comunica ao notar o olhar dela. - Você não ia pedir a ajuda do Rei para controlar a sua magia? - indaga ele levantando-se e estendendo a mão para ajudá-la a levantar-se também.
- Ele me orientou de como fazer isso - diz ela aceitando a ajuda e pegando na mão dele -, também me disse que preciso treinar e era isso que eu estava tentando fazer. - Ela fica de pé parada a frente dele.
- E como que controla essa magia? - pergunta o cavaleiro ainda segurando a mão dela.
- Segundo o Rei, a magia negra também é canalizada através das emoções, diferente da magia comum que só se canaliza pela natureza. E esse pequeno vestígio de magia negra que está dentro de mim se descontrola por causa das minhas emoções sombrias que se afloram.
- Você precisa aprender a controlar as suas emoções para conseguir controlar essa magia.
- Exatamente isso.
- E o que a fez perder o controle agora?
- Eu pensei no maldito Padre Bartolomeu para ativar a magia dentro de mim e tentei controlá-la usando o sentimento de serenidade ao aguardar o momento certo de acabar com ele, mas em minha mente começou a surgir imagens de quando ele me torturou enquanto estive presa no Tribunal, então isso fez eu perder o controle.
Dimitri aperta levemente a mão dela entre a sua fitando-a com compaixão. Ele umedece com a língua a ponta de seu polegar e o passa no canto do lábio dela, onde ainda havia uma pequena mancha de sangue. Freya arregala, levemente, os olhos surpresa com o gesto.
- Eu vou ter que partir amanhã de manhã junto a comitiva do Rei - diz ele transformando o gesto em um carinho na bochecha dela. - Queria me despedir de você.
- Só me dói ter que dizer adeus a você, Dimitri.
- A mim também.
O cavaleiro aproxima-se o rosto do dela e lhe dá um beijo na testa.
- Se cuida, Freya - diz ele dando alguns passos para trás, mas ainda com seus dedos enganchados nos dela.
- Você também.
Freya, aos poucos, solta a mão dele deixando seu braço cair pela lateral do corpo enquanto vê Dimitri, vagarosamente, virar-lhe as costas e afastar-se sem olhar para trás.
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No outro dia ao alvorecer, a comitiva do Rei já estava pronta para retornar ao Castelo Forte dos Espinhos. Freya e Adrian junto a alguns outros bruxos estavam no pátio para ver a partida de Sua Majestade e seus cavaleiros.
Henrique aproxima-se da filha enquanto sua cavalaria o aguardava montados em seus cavalos atrás dele.
- Ainda vamos nos ver de novo - profetiza ele encarando Freya.
- Eu preferia não ter que te ver nunca mais - cospe ela sustentando o olhar dele.
- Mas você sabe que jamais irá se livrar de mim. - Ele vira-se para Cassius, que estava ao lado de Freya. - Espero que vocês tenham sorte contra o Tribunal sem minha ajuda. - Volta a olhar para a filha. - Tome mais cuidado dessa vez, eu não estarei por perto e nem terei magia a suficiente para te trazer de volta novamente.
- Eu sei me cuidar, estarei mais vigilante dessa vez.
- Tem algo que estava me esquecendo de te contar. Você sabe que está mais poderosa agora apesar de ainda não ter controle sobre sua magia, mas o que você não sabe é que esse pequeno vestígio de magia negra que corre pelas suas veias te possibilita usar esse poder mesmo dentro do Tribunal, já que é a minha magia negra que bloqueia o uso de magia comum. Você tem essa vantagem que os caçadores e nem mesmo os Padres sabem disso, o único que sabia, está morto.
Freya fica surpresa com a informação, mas tenta manter sua expressão neutra.
- Por que não me disse isso antes? - indaga ela com voz dura.
- Porque me lembrei desse detalhe agora - responde ele cinicamente.
Freya revira os olhos indignada e respira profundamente se segurando para não avançar na garganta daquele que era o Rei e, infelizmente, seu pai também.
Henrique fingindo não perceber a reação dela, vira-se para Diana, que estava ao lado de Cassius.
- Espero te ver de novo também.
- Por que?
- Porque tem algo que gostaria de te dizer, mas vou esperar um momento mais adequado para isso.
- Seja lá o que for que você queira me dizer, Henrique, eu prefiro que guarde contigo, pois não pretendo te ver de novo.
- Como preferir - diz ele com voz baixa e inabalável, mas ao encará-la, seus olhos refletem por alguns segundos a mágoa com as palavras da bruxa.
Diana desvia o olhar fingindo não perceber.
Henrique vira-se a caminho de seu vagão, mas depara-se com o Abade Carlo.
- Agradeço mais uma vez pela hospitalidade, Abade.
- Eu sei que não posso negar abrigo a Vossa Majestade, mas, com todo o respeito e diante de todos os acontecimentos, espero que não precise se hospedar mais em minha abadia.
- Eu compreendo.
O Rei, sem mais delongas, sobe em seu vagão, que ruma para a saída do mosteiro, ao qual é acompanhado pelos seus cavaleiros.
Dimitri demora-se alguns segundos fitando Freya em uma despedida silenciosa, até que coloca seu destriero cinzento em movimento seguindo os demais para fora da muralha da abadia.