Tribunal do Santo Oficio
Freya sentia-se fraca e debilitada, por este motivo aceitava a sopa fria e sem gosto que lhe ofereciam dia sim e dia não. Aliás, ela já havia perdido a noção do tempo, não sabia dizer a quantos dias estava presa naquele lugar e nem se era de dia ou de noite, só sabia esperar pelo momento que viriam buscá-la de novo.
Além disso sentia-se imunda. As suas vestes eram as mesmas do dia em que chegara, exceto pelo seu manto marrom desbotado, que os carrascos haviam tomado dela. E por esta razão, ela sentia calafrios por todo o seu corpo, que tremia, constantemente, dentro daquela cela suja, úmida e escura. O Padre Gregório chegou a visitá-la mais uma vez para trocar o curativo de seu ferimento causado pela flecha do caçador.
A porta de ferro da cela se abre com estrondo e os homens de capa vermelho-sangue agarram a bruxa, desprendendo-a das correntes e levando-a, bruscamente, até a Sala de Confissão novamente. Dessa vez ela estava sem forças para oferecer resistência, então deixa-se ser arrastada sem alarde. Eles deitam-na em uma placa de metal, ao qual ela sente o corpo inteiro arrepiar ao tocar o material frio, amarrando-a com cordas grossas, pelos tornozelos e pulsos.
Enquanto os carrascos enrolavam as cordas, Freya mantinha os olhos fechados tentando se desligar daquele momento, mas ao ouvir a voz grave do Padre Bartolomeu, ela abre-os novamente e o encara com rancor.
- Está pronta para confessar, bruxa? - indaga o Padre parado de pé ao lado dela encarando-a de volta com seus olhos amendoados perversos.
- Vai tentar... me afogar...de novo? - ironiza ela, falando vagarosamente, por ainda sentir a garganta doer.
- Dessa vez não, querida Freya. - Ele responde cruelmente. - Quero testar até onde vai a sua resistência, principalmente, física.
Freya não responde e desvia o olhar do Padre.
- Podem puxar as cordas - ordena Bartolomeu aos carrascos, que manuseando as manivelas puxam as cordas em torno dos tornozelos e pulsos de Freya.
Ela cerra os olhos apertando-os e fazendo uma careta de dor.
- Podem puxar mais - ordena o Padre ao perceber a reação dela.
Os carrascos esticam ainda mais as cordas fazendo a bruxa soltar um grito. Freya sentia como se seus membros fossem se romper a qualquer momento e sua ferida, que ainda não estava, completamente, cicatrizada começa a ser repuxada fazendo-a sentir como se seu abdômen estivesse queimando em brasas.
- Podem parar - manda Bartolomeu olhando para Freya, que tinha lágrimas involuntárias escorrendo pela sua bochecha. - Está pronta para confessar?
- Não - sussurra ela abrindo os olhos.
O Padre com uma expressão de ódio no rosto afasta-se pegando um espeto de ferro e esquentando a ponta na tocha presa à parede da sala. Ele aproxima-se novamente de Freya e encosta a ponta fervente do espeto na perna da bruxa arrancando um gemido dolorido da garganta dela, que o sufoca mordendo os lábios.
Bartolomeu finca a ponta com mais força na pele dela deixando uma marca redonda de queimadura. Freya solta um berro agudo que ecoa pela sala.
- E agora está...
- Devia...me matar...logo - interrompe ela com a voz rouca.
O Padre a espeta novamente, mas na barriga bem no local do ferimento abrindo-o de novo e provocando o vazamento de pus e sangue. Depois também a espeta nos braços e no ombro esquerdo perto da marca de nascença dela.
- Está aqui a marca do diabo que você carrega, bruxa.
Freya apenas gritava de dor, de forma ensurdecedora, mas sem falar nada. O Padre a espetava em várias partes do corpo, até mesmo na bochecha. Ela sentia como se fosse desfalecer a qualquer momento, no entanto a bruxa ainda estava consciente e determinada a não falar absolutamente nada.
- Você é, realmente, resistente bruxa, mas vamos ver até quando - ameaça ele guardando o espeto. - Podem levá-la de volta a cela - ordena aos carrascos -, se ela desmaiar aqui, vai ser uma completa inútil.
Os homens soltam as cordas dos tornozelos e pulsos de Freya e a arrastam para fora da Sala de Confissão, mas ao saírem na porta se deparam com o Bispo Domênico.
- Esta bruxa está sendo resistente - comenta Padre Bartolomeu saindo da sala -, não disse nada até agora.
O Bispo olha para Freya de cima a baixo com desdém e ela o encara desafiadoramente.
- Sabia que para usar magia negra, ela cobra um preço? - Ela sussurra para o Bispo. - E é bem alto.
- Então não perca mais tempo com ela. - Ele responde ao Padre, ignorando as palavras de Freya. - Mande-a para a fogueira.
- Como ordenar, Reverendo - diz Bartolomeu fazendo um sinal com a cabeça para que os carrascos a levassem.
Os homens, então, arrastam a bruxa pelo corredor estreito e à meia-luz.
Adrian, vindo pelo outro lado do corredor passa pelos carrascos arrastando Freya, que estava com a cabeça baixa e os cabelos pretos cobrindo-lhe o rosto. Olhando, rapidamente, de soslaio para a bruxa, o caçador pôde perceber, apesar da pouca luminosidade, que ela estava muito machucada com os pulsos e tornozelos inchados e arroxeados, marcas de queimaduras espalhadas pelo corpo e o vestido cinza, que agora estava todo em tonalidade avermelhada devido ao sangue, estava rasgado e sujo.
- Aquela é a bruxa que você capturou - diz Bispo Domênico quando o outro aproxima-se notando o olhar dele voltado para os carrascos levando Freya -, ela não está cooperando muito, terá que ser executada o quanto antes.
- Por que o Reverendo me chamou até aqui? - indaga o caçador mudando de assunto.
- Para te avisar que terá nova caçada - responde Domênico sério -, convoque alguns caçadores o quanto antes, pois partirão amanhã de manhã.
Adrian apenas faz sinal afirmativo com a cabeça.
- Pode ir.
O caçador reverencia o Bispo e sai pelo corredor virando em outro mais estreito rumando para a escada em espiral que dava acesso ao pátio.
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O sol já estava se pondo no horizonte, quando a pequena comitiva do Rei encosta os vagões na Praça da Fé em frente à entrada principal do Tribunal do Santo Ofício.
- Você vai ficar aqui dentro do vagão - ordena Henrique a Cassius.
- Claro que não - protesta o outro indignado.
- Vai sim - retruca o Rei seriamente -, se esqueceu que você é um bruxo e que se te pegarem terá o mesmo destino que a menina que está querendo salvar?
- E o que você vai fazer?
- Vou entrar no Tribunal sozinho, você será levado junto aos meus cavaleiros para os fundos. Não faça nenhuma tolice.
Henrique sai do vagão passando pela entrada semicircular e adentrando o local pela porta dupla de madeira, ao qual é recebido pelo Bispo Domênico.
- Vossa Majestade, pelo visto recebeu minha mensagem - diz o Sarcedote reverenciando o Rei.
- Sim, Bispo Domênico - diz Henrique com enfado na voz.
- Vossa Majestade, acompanhe-me até meu gabinete.
Os dois caminham, lado a lado, por um corredor longo virando para outro mais curto, ao qual no fundo ficava o gabinete do Bispo.
- Onde meus cavaleiros vão ser instalados? - pergunta o Monarca ao adentrarem o recinto.
- Eles irão ficar no alojamento junto com os caçadores e carrascos - responde Domênico sentando-se em sua poltrona estofada de veludo após fechar a porta do gabinete.
- Está certo - concorda Henrique sentando-se em outra poltrona aveludada a um canto do cômodo.
- A cada ano que passa esses bruxos parecem estar ficando mais fortes.
- Parece que a ajuda que ofereço não está sendo suficiente.
- Nossa parceria sempre foi uma ajuda reciproca.
- E a Igreja tem sido muito beneficiada em seus propósitos durante todos esses anos - diz o Rei recostando-se no encosto alto da poltrona.
- Assim como Vossa Majestade se manteve no poder em troca do meu silêncio - rebate o Bispo inclinando o tronco para frente e apoiando os cotovelos na mesa.
- Você só manteve sua descrição sobre quem eu sou, porque sem minha magia negra não conseguiria alcançar seu propósito de aniquilar com os bruxos.
- E sua ajuda tem servido muito bem ao propósito da Igreja, porém parece que seu povo está se fortalecendo ou sua magia negra que está enfraquecendo.
- Eles não são o meu povo - retruca Henrique rispidamente.
- Você é um bruxo como eles e os renega, ajudando a exterminá-los - diz Domênico arqueando, levemente, uma das sobrancelhas esbranquiçada.
- Eu não devo nada aos bruxos.
- E você deseja ser o mais poderoso.
- Eu já sou o mais poderoso - corrige o Rei com prepotência coçando sua barba negra. - Minha magia não está enfraquecendo, é a Igreja que não está fazendo a sua parte direito.
- Os bruxos estão escondendo-se pelos vilarejos e florestas há tempos - reclama o Bispo remexendo as mãos enrugadas nervosamente -, mas agora estão fazendo isso muito bem.
- O que você quer de mim dessa vez, Reverendo? - indaga Henrique impaciente. - Saiba que meu plano não era vir até aqui apesar do seu pedido.
- A proteção sobre nossa fortificação contra magia e o bloqueio do uso da mesma colocado nos instrumentos de caça e tortura não estão sendo o suficiente.
- Não sei se posso oferecer mais do que isso.
- Vossa Majestade, eu sei que pode - diz o Bispo encarando o outro com expectativa -, se quiser.
- A magia negra é poderosa, mas também tem seus limites e consequências.
- O que vou pedir é bem simples: alguma magia para localizar os esconderijos desses bruxos.
- Seria uma magia simples se eu tivesse como canalizar energia para fazer isso.
- Como assim?
- Para se fazer uma magia de localização é necessário ter um pertence pessoal de quem se deseja localizar, no caso você está querendo encontrar um lugar e não uma pessoa especifica.
- Então o bruxo mais poderoso do Reino não consegue fazer uma magia simples? - provoca Domênico.
- Eu não disse que não consigo - explana Henrique com desdém. - Para localizar o esconderijo dos bruxos vou precisar canalizar a energia da floresta e este pode ser um processo um pouco demorado.
- Mesmo que demore, você conseguindo localizar é o que importa.
- Vou avisar meus cavaleiros que ficaremos mais tempo do que o previsto.
- E Vossa Majestade pode ficar em meus aposentos, acredito que ficará mais confortável e eu me acomodo em um dos quartos junto aos outros Padres.
- Agradeço pela hospitalidade.
Henrique levanta-se da poltrona e retira-se do gabinete acompanhado pelo Bispo, que o conduz até o alojamento dos caçadores, que ficava no pátio.
O Rei vai em busca de Cassius o encontrando perto do estábulo, que ficava ao lado.
- Vamos precisar ficar hospedados aqui por alguns dias - avisa ele aproximando-se do outro.
- Por que?
- Devido aos meus negócios com o Bispo.
- E quanto a Freya?
- Provavelmente, ela está presa no subsolo junto com outros bruxos em celas trancadas e vigiadas por carrascos. Não vai ser fácil chegar até ela e tirá-la daqui sem que ninguém perceba.
- Mas eu tenho que tentar.
- Eu vou ver se consigo tirar alguma informação útil do Bispo, até lá não faça nada.
- Você quer que eu fique parado enquanto ela pode estar sofrendo? - pergunta Cassius inconformado. - Eu posso tentar descobrir algo com os carrascos também, já que estou no meio deles.
- Só tome cuidado e seja discreto, pois se te pegarem, eu não vou poder fazer nada nem por você e muito menos pela menina.
- Eu vou ser cuidadoso.
Henrique afasta-se e vai conversar com os seus cavaleiros.