𝗥𝗔𝗙𝗘.
Faço toques de mãos com todos os caras logo no fim do treino. Elogio alguns e faço críticas construtivas a outros, afinal, eu sou o capitão e precisava estar à frente do desempenho do meu time. Em geral, ninguém treinou mal e isso me deixava feliz. O campeonato estava cada vez mais perto e minha dificuldade pra dormir aumentava. Hóquei é a minha vida desde que eu era moleque. No gelo, é como se eu flutuasse em cima das lâminas dos patins e a liberdade bombeasse minhas veias mais que sangue. Talvez eu tenha dado sorte de escolher qual carreira seguiria pelo resto da vida muito cedo. Outros chamam de azar, já que muito cedo, eu comecei à treinar feito um adulto. Tudo com um "treinador" particular, que se eu não fizesse as coisas direito ou errasse um passe, levava porrada até aprender a andar na linha.
Mais conhecido como meu pai.
Sem perceber, toco minhas costelas, o lugar que Ward Cameron mais gostava de bater com meus próprios patins infantis. Inúmeras vezes fiquei com cortes pelo contato das lâminas afiadas dos mesmos contra minha pele. Nunca era nada profundo demais, mas ainda assim, é bizarro pensar que o cara que queria "me preparar pra enfrentar de tudo no rinque" já me deixou cicatrizes que eu precisava inventar a melhor das desculpas para dar quando alguém notava. Já tinha dito de tudo. Arranhão de gato, arranhão de mulher. Em hipótese alguma eu poderia dar o mole de deixar escapar que os meus hematomas tinham sido obra do cara que todo mundo naquela merda de universidade admira.
Acabo respirando fundo. E, como num toque de anestesia, a mão de JJ sobre o meu ombro assim que retiro a blusa do meu uniforme apaga todos os meus pensamentos sombrios sobre o meu passado.
⏤ O treinador Collins mandou te chamar lá na sala dele. ⏤ o loiro me avisou.
Não posso evitar franzir a testa. Hoje, pela minha própria percepção extremamente perfeccionista, eu não havia cometido erro algum no gelo. Na real, em todos os treinos me esforço pra manter a linha. Não conseguia pensar num motivo técnico pra Collins querer falar comigo. De qualquer maneira, apenas aceno com a cabeça para JJ e quando termino de tomar banho, acelero os passos na direção da sala do treinador.
⏤ Treinador Collins? JJ disse que queria falar comigo. ⏤ é a primeira coisa que digo quando adentro sua sala.
O homem de aproximadamente uns quatro centímetros mais alto que eu está sentado em sua cadeira giratória com o rosto levemente neutro. Logo indica com a cabeça para que eu me sente à sua frente e assim o faço. Me aconchego por trás de sua mesa de escritório e esfrego as mãos nas coxas, esperando que ele começasse à falar.
⏤ Seu pai conversou comigo. ⏤ uniu as mãos sobre a mesa.
No mesmo instante, me arrependo de ter escutado JJ e entrado naquela merda de escritório.
Collins percebe como meu corpo fica tenso e pressiona seus lábios um contra o outro. Obviamente, ele não sabia que eu passei metade da minha infância apanhando do cara que ajudou à construir o campus que hoje ele trabalha, mas tinha noção de como Ward Cameron poderia ser rígido. E ele se preocupava comigo, assim como com todos os outros caras do time.
⏤ Disse que está incomodado com a forma que você tá jogando ⏤ se remexeu na cadeira, sério. ⏤ citou que estou te dando muita liberdade, deixando você ir à festas e encher a cara feito um moleque, e que isso não é postura de um futuro ouro da temporada.
Meu sangue ferveu.
Filho da puta. Desgraçado. Inferno. Merda do cacete.
⏤ Me falou que acha que isso está atrapalhando seu desempenho ⏤ Collins suspirou.
⏤ Onde quer chegar? ⏤ acabo o interrompendo.
Em qualquer outra ocasião, Collins teria me dado um esporro sobre como odeia ser interrompido, mas ele me conhece. Sabia que eu estava queimando feito o inferno por dentro. Por isso, respirou fundo, sentindo minhas emoções tanto quanto eu.
⏤ Não tenho outra escolha à não ser te dar limites, Cameron ⏤ quando o vejo puxando um papel que estava escondido abaixo da vidraça de sua mesa que eu não havia notado, sei exatamente aonde tudo aquilo iria dar.
Collins vira o papel pra mim e meus olhos passeiam pelas letras garranchosas na folha.
Nada de álcool, nada de drogas, nada de sair com mulheres em público para aumentar ainda mais minha reputação suja no campus e nada de festas. Absolutamente nenhuma farra que eu estava acostumado por estar na faculdade.
É quase uma certidão de óbito.
⏤ Nem fodendo. ⏤ rosno.
Meu treinador coça a própria nuca, desconfortável.
⏤ Só siga os protocolos, Rafe, e não teremos problemas até a temporada começar ⏤ e, com isso, ele se levanta. ⏤ está liberado.
Como se fosse tão fácil.
⏤ Não pode fazer isso, treinador ⏤ me ponho de pé. ⏤ meu pai te ameaçou, foi isso?
⏤ Não fala besteira, garoto ⏤ me repreendeu. ⏤ ele é seu pai e quer te impôr limites.
⏤ E desde quando eu preciso ser tratado igual a porra de um adolescente? ⏤ bato as mãos sobre a sua mesa. ⏤ eu tenho vinte e três anos, Collins.
⏤ E seu pai ainda tá no controle de toda a sua carreira ⏤ responde duramente. ⏤ então, te aconselho à apenas fechar a boca e seguir o que está lhe sendo mandado.
Eu não culhão pra mover mais um músculo. Estava em choque. Sentia que mais um movimento suspeito, e eu teria a mesma queda de sempre. A mesma que envolvia o nome e as atitudes de filho da puta do meu progenitor, onde sempre terminava comigo quebrando tudo e me sentindo um doente depois.
O treinador Collins dá a volta pela mesa e para na minha frente, segurando meu rosto com as mãos. Por um breve momento, penso que ele vai me dar um abraço, mas caio na realidade do que está rolando mais uma vez.
⏤ As regras fazem parte da vida adulta, Cameron. Não aja feito um adolescente querendo quebrar elas.
Com dois tapinhas no meu ombro, o treinador indicou com a mão para que eu me retirasse. E por maior que fosse o peso nos meus pés que quase me impediam de andar, eu piso fundo pra fora daquela maldita sala.
Sinto todo o meu corpo tenso. Minhas veias bombeiam uma mistura de sangue com ódio e, quando eu paro na porra do meio do ginásio e percebo que estou sozinho, eu podia jurar que o gelo entre meus pés se partiu no meio. A mesma fodida sensação de sempre.
Então eu grito. Grito tão alto que minha garganta arranha e as veias de meu pescoço saltam sob a pele. As palmas das minhas mãos esquentam, assim como o resto do meu corpo. As lágrimas tomam conta dos meus olhos enquanto libero a voz no urro ensurdecedor de fúria. Eu odiava a facilidade que ele tinha em estragar o meu dia, em estragar a minha vida.
Eu podia passar o tempo que for desfilando com o mundo nos meus pés como todo mundo diz, mas apenas uma atitude ou palavra de Ward Cameron colocava fogo no meu conto de fadas de forma tão fácil que me assustava.
E eu me assusto. Me assusto por perceber que não estou sozinho no ginásio como eu pensava. Os cabelos claros e a estatura baixa da garota familiar eram inconfundíveis enquanto caminhava na minha direção.
⏤ Rafe? ⏤ ela sussurrava, como se me contasse algum segredo. ⏤ cacete, por que tá gritando? São dez da noite.
Eu abro a boca pra responde-la, mas não consigo. Minha garganta trava e meus lábios se comprimem. Nem à pau que eu iria fraquejar na frente dela.
⏤ Todo mundo já foi pra casa, por que você... você tá chorando? ⏤ agora ela franze suas sobrancelhas.
Eu rapidamente nego com a cabeça.
⏤ Volta pro alojamento, Avery. Não deixa a minha irmã sozinha. ⏤ eu começo à andar pra fora do ginásio sem olhar pra trás.
⏤ A Sarah não é criança, pode ficar sozinha ⏤ suspiro ao escutar sua voz atrás de mim. ⏤ e pode, por favor, não dar as costas quando eu estiver falando com você?
Minha irritação volta feito nunca. Que porra de garota irritante do caralho.
⏤ O que você quer? ⏤ me viro em sua direção.
Noto como ela está trajando um conjunto de calça e casaco de moletom azul. Seus cabelos preso num coque e o rosto levemente sonolento. Ela devia estar prestes à dormir.
⏤ Quero que você pare de berrar feito um maluco porque preciso dormir. As pessoas vão achar que está ocorrendo um assassinato nesse lugar. ⏤ cruza os braços.
Olho tempo demais pro seu rosto. E então, lembro do ocorrido da outra noite. Da forma que ela correu pra fora da praia minutos depois que lambi todo o seu corpo, coisa que nem em mil anos, eu imaginaria que uma mulher faria comigo.
⏤ Por que tá acordada? ⏤ ela abre a boca pra responder exatamente o que eu espero. ⏤ não é por causa de mim.
Avery morde o interior da própria bochecha e desvia o olhar pros próprios pés.
⏤ Insônia ⏤ confessou. ⏤ talvez eu tenha tomado café demais.
Sua fala me faz abrir um sorriso mínimo, o que me choca, levando em conta que há minutos atrás, eu estava prestes a destruir a porra do ginásio inteiro.
⏤ E você?
É sua vez de me perguntar.
Respiro fundo.
⏤ O treino terminou agora à pouco. O técnico me chamou pra dizer que meu pai lhe passou uma lista de coisas que eu tenho que deixar de fazer até a temporada começar, caso o contrário, ele me corta da competição.
Dou uma risada sem ânimo após escutar o que eu disse. Não dava pra acreditar. Era patético.
Avery era grudada com Sarah e como ninguém, sabia como o grande Cameron era um filho da puta completo. Presenciou inúmeras cenas que eu preferia que nem ela nem a minha irmã tivessem presenciado. Ninguém merecia ver essas merdas, ainda mais quando se é visita.
⏤ Sinto muito ⏤ murmurou, sem jeito.
Balanço os ombros, tentando parecer indiferente.
⏤ Estou acostumado.
⏤ Merda, não diz isso ⏤ ela geme. ⏤ soa tão deprimente.
A forma como ela está agitada, batendo o próprio pé no chão e mordiscando o lábio inferior me faz rir. O café devia estar começando à fazer efeito.
Eu toco a língua no céu da boca e puxo o celular, notando as horas tardes no ecrã. Nem eu, nem muito menos a senhora cafeína iriam dormir agora.
⏤ Ei ⏤ ela me olha. ⏤ quer sair daqui?
Avery me olhou estranho.
⏤ Se isso for um convite com conotação sexual, pode esquecer. ⏤ sorrio.
⏤ Só se você quiser, princesa.
Ela ergueu o dedo médio pra mim.
⏤ Só nos seus sonhos, Cameron ⏤ quando penso que ela me dará as costas, caminha na minha direção e relaxa os ombros, de maneira inofensiva. ⏤ mas sim, eu quero.
Dentro de algumas horas, ela voltaria à ser a Avery Jackson que só falta cuspir na minha cara. Por isso, agradeço mentalmente à cafeina por ser minha amiga hoje.