37. Levantar âncora

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Os passos de Jimin na direção da porta são abafados pelo volume de uma torrente de chuva. Ele abre a porta da frente e suspira com o aguaceiro, olhando a distância entre a segurança de dentro da casa e a porta do carro que está dirigindo. "Perfeito," ele resmunga com uma voz chorosa. "Eu não tenho sorte e está tudo certo no mundo."

Feliz por permanecer seca e aquecida por dentro, Yuna languidamente estende um minúsculo guarda-chuva para ele, pendurando-o em um dedo pelo barbante preso ao cabo. "Aqui. Achei isso na sala de estar."

Ele o pega da mão dela, uma expressão menos do que grata em seu rosto bonito, fazendo suas bochechas incharem. "Uau. Obrigado." Ele clica no botão e um guarda-chuva rosa e amarelo de bolinhas se desdobra em um círculo grande o suficiente para cobrir sua cabeça. "Prazeroso," ele suspira, com um último olhar para o mar de chuva. "Bem... levantar âncora, eu acho." Então, suas botas bateram no chão de madeira, movendo-se para fora na tempestade.

A água cai em um lençol denso e pesado que engole Jimin inteiro, junto com a explosão de cores brilhantes que é seu guarda-chuva. Yuna fica na porta, perscrutando a cena lúgubre e alagada, e espera até que o som de um motor sendo acionado rosne através das ripas entre as rajadas de chuva. Uma rajada de vento frio sopra em sua direção, trazendo consigo gotas de chuva geladas. Fazendo uma careta, ela fecha a porta novamente e a tranca contra o ataque.

Ela pode ouvir a chuva ainda caindo no telhado de todos os lugares da casa. Normalmente, a chuva a faz se sentir confortável e aquecida por dentro, mas quando ela está praticamente sozinha em uma casa escura e desconhecida com pisos ecoicos e cantos escuros, parece mais o cenário de um filme de terror. Yuna estremece e acende todas as luzes da casa, exceto os quartos. Quando ela acende a última luz do corredor, seu estômago começa a roncar alto.

Pelo menos ela tem comida agora.

Olhando para o quarto de Jungkook, ela vê que ele ainda está dormindo. A maneira como ele dorme não é como uma pessoa normal. A maioria das pessoas muda de posição de vez em quando ou movem os cobertores com o movimento suave do peito que respira. Mas Jungkook parece morto. Ele não se move ou muda de posição, e as mais leves respirações que inflam seu peito são quase imperceptíveis, a menos que Yuna esteja olhando com atenção.

Droga, talvez ele esteja morto.

Uma pequena explosão de pânico inunda o seu peito, mas é imediatamente extinto quando um pequeno ronco corta o silêncio do quarto. E o estômago dela responde de volta, rosnando alto novamente.

Acho que é hora de comer. Virando-se, ela volta pelo corredor em direção à cozinha, seus passos suaves batendo levemente no piso de madeira, fazendo ecos solitários por toda a casa vazia. A chuva está pintando a cidade inteira de um tom monótono do lado de fora, e seu barulho constante contra o telhado e as paredes estão fazendo-a se sentir lenta e preguiçosa.

Lentamente, Yuna faz dois sanduíches com algumas das coisas que Jimin trouxe para eles. Parece que demora uma eternidade para espalhar a maionese no pão e, mais tarde, na carne e no queijo e nos vegetais. Seu corpo está se movendo a passo de caracol.

Quando terminar, ela equilibra os dois pratos em cada mão e segura um pequeno pacote de chips entre os dentes, retornando pelo caminho para Jungkook e seu quarto escuro. Ela entra pela porta e para ao ver uma figura solene sentada na cama.

As persianas da janela foram fechadas e Jungkook está sentado na beira da cama com os pés apoiados no chão, observando as gotas translúcidas rolarem pelo vidro da janela.

"Ei, você está acordado," Yuna diz baixinho, para não o assustar. "Eu trouxe um sanduíche para você. Você está com fome?"

Não há resposta.

Seus ombros permanecem rígidos e inflexíveis, a prancha reta de seu corpo não relaxa e nem se contrai ao som da voz dela. É como se Yuna nem estivesse lá. Ela pousa os pratos ao lado do copo d'água na mesinha de cabeceira, que não tem mais gelo, e dá a volta na cama até onde o homem de cabelo preto está sentado quieto. Quando ela finalmente consegue ver o rosto bonito de Jungkook, ela não sabe bem como lidar com ele. Ele está apenas... em branco.

Aqueles grandes olhos de corça que ela admira secretamente com tanta frequência estão bem abertos, sem piscar enquanto olham vagamente para a tempestade que assola uma parede de distância. Seus lábios estão fechados, apertados, pressionados em uma linha fina. De vez em quando, suas narinas dilatam-se para respirar.

Yuna não sabe o que dizer ou fazer.

Sua mente traz de volta a frase que Jimin usou apenas um tempo atrás quando mergulhou na chuva gelada e desapareceu.

Levantar âncora.

É isso o que significa... Todas as coisas que ancoram Jeon Jungkook a este mundo, quaisquer relacionamentos, laços e emoções, não estão aqui agora. Elas foram levantadas, permitindo que o navio de sua mente fosse levado para longe da costa segura de seu corpo, flutuando frio e sozinho no meio de um mar de instabilidade emocional. Ele está em algum lugar no ar, flutuando à deriva ao longo de uma corrente invisível de desgosto e trauma.

Ela está com medo de que, se tocá-lo, ele nunca mais volte. "Jungkook," ela engasga pesadamente, estendendo uma mão hesitante e trêmula em direção à sua forma de estátua. O que ela faz? Ela não pode simplesmente deixa-lo assim.

Os dedos de Yuna roçam o tecido de sua camisa, apenas um pouco. E, como se ela tivesse atirado nele, Jungkook desaba sobre si mesmo. Ela engasga quando ele simplesmente cai, se enrolando para deitar de lado na cama, o olhar arregalado nunca deixando a janela. Se ela não estivesse olhando tão de perto, poderia perder os tremores quase imperceptíveis que sacudiam o corpo dele.

Jungkook exala, e isso está trêmulo e instável.

"Sinto muito," ele sussurra com uma voz rouca. "Sinto muito. Eu não queria."

Não queria o quê? O coração dela está doendo por ele. Ele está tão ausente, perdido em qualquer evento passado que o fez sair na chuva.

Jungkook mostra os dentes em uma careta de dor, sua cabeça pressionada contra o travesseiro. "Eu não quero. Não me obrigue, por favor. Não me obrigue."

Ele engasga com as palavras, como se estivessem queimando sua garganta e língua ao sair. Na penumbra que entra pela janela do quarto, Yuna observa uma lágrima escorrer pela pele lisa de sua bochecha. Ela escorre na cruz acima de sua bochecha, então goteja no esquecimento enquanto penetra nos lençóis.

Os olhos dela pairam sobre aquela cruz. O que quer que essa tatuagem represente, Yuna está assistindo Jungkook suportar agora. Ela o está observando sofrer com todos os ossos do corpo, observando o dano assustador que o fardo duradouro lhe custou.

Jeon Jungkook está quebrado.

Yuna pode apostar que todos eles estão, de alguma forma. Ela aposta que ela também está. Todos estão caindo aos pedaços na frente um do outro, vivendo com isso, apenas tentando se manter colados com tudo o que podem.

Quaisquer dúvidas fogem dela naquele momento.

Gentilmente, Yuna vai na ponta dos pés até onde a cabeça de Jungkook repousa na cama, lágrimas ásperas ainda caindo periodicamente de seus olhos avermelhados. Ela levanta a cabeça dele junto com os seus ombros, e desliza por baixo deles, para que ele fique em seu colo.

Ela só quer que ele saiba, por algum motivo incerto, que alguém está aqui com ele. Ela quer que ele saiba que não está totalmente sozinho na chuva, nem totalmente sozinho no passado.

Ela também está quebrando, mas está aqui.

Ela está aqui.

Yuna embala Jungkook como uma criança perdida até que seus olhos vagos se fechem, protegendo-o em seus braços da tempestade que assola ao seu redor.

BLOOD INK: Property of Jungkook [Tradução PT/BR]Where stories live. Discover now