Beijos

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"Estas três coisas me maravilham; e quatro há que não conheço:
O caminho da águia no céu; o caminho da cobra sobre a rocha; o caminho do navio em alto mar; e o caminho do homem com uma donzela."
Provérbios 30:18,19

Ninguém iria dar um beijo em Maria. Ponto final.

Claro, ninguém tinha pensando em fazê-lo até ela sair falando isso para todos os meninos de seu pequeno bairro em uma cidade de um estado que já não é mais colocado nos mapas do Brasil. Como a cidade se chamava Aragatuaçapatamabaguayá, e ninguém tinha nenhum motivo para ir a um lugar com um nome feio desses, eles só chamavam a cidade de "a cidade" e estavam muito confortáveis com isso. Mas por que estamos falando da cidade? A história é sobre Maria, a menina que nunca deixaria um menino lhe beijar, nem quando se tornasse uma mulher e os meninos homens, mesmo quando virasse avó e os meninos avôs, ela nunca seria beijada por nenhum moleque.

- Eu nunca serei beijada por nenhum moleque - ela disse uma vez aos sete anos, enquanto via meninos jogando bola descalços na rua, próximos a um limoeiro amaldiçoado que nunca dava limões.

Mas ninguém queria beijá-la, só passaram a correr atrás dela pelas ruas de terra para irritá-la. Não que ela não fosse bonita, mas eles ainda eram muito novos para perceber isso. Com excessão de Jorge.

Jorge tinha um sonho, beijar mil meninas. Uma meta ousada que ele falava com uma convixão tão absurda que era impossível não acreditar que ele poderia - e iria - fazer isso. Sempre com aquele jeito folgado de andar, os cadarços desamarrados, os cabelos elegantemente bagunçados e as mãos perdidas nos bolsos. Uma ofensa vinda dele parecia um elogio inteligente que você era burro demais para entender, e quando te elogiava... na verdade ele nunca elogiou ninguém, esse pequeno narcisista.

A adolescência serviu para o deixar mais bonito e irritante. Parecia que bocas de meninas iam para seus lábios como borboletas nas flores. E para cada borboleta, um nome em sua lista, ao lado de um quadrado assinalado. Mas, o primeiro nome da lista já estava lá antes de todos, verde como um limão, apenas seu quadrado estava desmarcado. Esta garota ele sabia que beijaria, de um jeito ou de outro.

- Beijarei ela de um jeito ou de outro - Jorge falou para os amigos, orgulhoso, sem nenhuma dúvida nos brilhantes e redondos olhos castanhos.

- Nenhum menino pode beijar Maria - um de seus amigos falou, enquanto assistiam a um jogo de outros garotos por trás de uma cerca quebrada.

- Nenhum menino pode me beijar - era Maria que falou, atrás deles. Olhos verdes cemisserrados, o nariz empinado, o vento soprando dramaticamente no cabelo ruivo, uma cor tão rara quanto um limão de um limoeiro amaldiçoado. Seu rosto em forma de coração sem espinhas só era maculado por pequenas sardas que falhavam miseravelmente em diminuir a beleza de sua pele da cor que a neve seria se nevasse em Aragatuaçapatamabaguayá. Talvez por ter parentes ricos, tios e primos que moravam na capital, e que não raramente lhe davam presentes ostensivos, que ela se achava muito superior a todos os humanos que conhecia, o que se resumia - em homens - aos meninos pobres do bairro, jogando bola em ruas de terra, indo para a escola com mochilas surradas e cadernos cheios de orelhas nas páginas que não raramente se tornavam aviões e bolinhas; e em mulheres, se resumia a meninas que nunca seriam tão lindas quanto ela.

Era naquela época em que não havia celulares e apenas os mais ricos tinham televisões. Maria não tinha, e seus muito invejados vestidos eram costurados por sua tia que morava com ela e a mãe. Uma fora traída pelo marido, que agora devia estar na capital se divertindo com aquela morena irrelevante para a história, e a outra, a mãe de Maria, era solteira. Apenas solteira. O homem mais presente na vida da mãe de Maria que ela conhecera fora um apicultor que se dizia um rico fazendeiro de uma cidade depois da serra. As coisas foram horríveis entre os dois. Não vou falar sobre isso. Direi apenas que certos temas são pesados demais para serem escritos em uma história como esta. A mãe de Maria era solteira, e, do padre de cavanhaque branco ao mendigo com chapéu de palha, todos do bairro sabiam que ela seria até o fim de seus dias.

Fragmentos de Ecos EsquecidosWhere stories live. Discover now