Encarando a realidade

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Continuei tocando a vida, que remédio? Aliás, nem quero mais saber quando é a folga do Rogério - ele não vem para casa mesmo. Agora ele tem outro endereço...

Também voltei definitivamente para a minha casa; não fazia sentindo eu ficar longe do meu quarto, dos meus livros e CDs, e, principalmente, do meu computador.

Estou justamente navegando pela internet quando alguém bate na porta. Penso que é a Celeste, a empregada, que de vez em quando cisma de querer limpa o meu quarto na hora errada. Então falo:

- Pode deixar, Celeste, que eu mesmo arrumo o meu quarto, obrigada.

Mas aí a porta se abre e ouço a voz tão conhecida:

- Oi, princesa!

Viro a cabeça e dou com o Rogério. Antes que eu responde, ele pede:

- Dá para você vir um instantinho na sala pra gente conversar?

- Olhe, eu prefiro que de agora em diante você me chame pelo meu nome. E acho que a gente não tem mais nada que conversar.

- Ah, tem sim - ele diz, entrando no quarto. - Se você não quer ir para a sala, a gente conversa aqui mesmo. Vamos ter até mais privacidade.

Na sequencia, senta-se numa cadeira. Não vai adiantar nada eu insistir, ele não irá embora mesmo sem a tal conversa.

- Então, tá - digo. - To ouvindo.

- Quero que você entenda, princesa - ele começa se fosse um discurso bem ensaiado -, que não procurei por isso... Sua mãe e eu vivemos muitos anos e fomos felizes. Mas paixão não escolhe hora. Aconteceu. E, como eu disse, não teria sentido levar uma vida dupla. Seria falta de respeito por mim mesmo, pela mulher que eu escolhi, pela Viviane e até por você.

- Fácil assim, né? Você joga fora vinte anos da sua vida, sem falar de uma filha, como se deletasse um parágrafo no computador. Taí, gostei 

- Não seja irônica, não é do seu feitio - censura ele, muito sério. - Parece que eu abandonei você. Estou apenas me separando da sua mãe. O meu amor por você, princesa, continua o mesmo. Eu não vou deixar de ser seu pai porque vou me casar com outra mulher...

- Ah, que gracinha, já estão pensando em  casamento? A garotinha está em idade fértil, quando é que vou ganhar novos irmãos?

- Como assim, garotinha? - ele parece desconcertado.

- Já sei de tudo, uma colega viu você com uma garota. Desde quando você se amarra em ninfetas,  hein?

- Que loucura! Ela não tem nada de ninfeta; parece bem mais jovem, mas é uma mulher adulta. Que direito tem essa colega de invadir a privacidade da nossa família?

- Engraçado justamente você falar em família, onde foi que você conheceu a garota, me diga? Ela é uma comissária de bordo?

- Não, ela não é comissária, é advogada. Eu a conheci no clube, jogando tênis.

- ... e bola pra cá, bola pra lá... o meu querido pai se descobriu apaixonado como um adolescente.

- Não exatamente como um adolescente, mas me descobri apaixonado, sim. Relutei muito, no início, em assumir essa paixão. Você acha que eu não pensei na mágoa que causaria a Viviane e a você?

Dou um pulo da cadeira, de tanta raiva:

- Relutou coisa nenhuma, deixe de ser falso, pelo amor de Deus! Pelo menos assuma que está numa boa, namorando uma garota que tem idade pra ser sua filha!

- Mas ela não é minha filha, minha filha é e vai continuar sendo sempre você. Repito quanto vezes precisar: estou me separando da sua mãe, não de você.

- Tá legal. Dê um tempo para eu dirigir tudo isso. Você não esperava que fosse fácil, esperava? Eu não sou racional como a Viviane. Depois, pra ela também é questão de amor-próprio, não vai se rebaixar na sua frente. Mas eu sou apenas a sua filha, por isso me dou o direito de espernear...

Ele parece concordar:

- Depois com calma a gente conversa a regulamentação das visitas.

- Que visita?

- Ora, embora você esteja sob a guarda da sua mãe, eu tenho o direito de vê-la. Durante as minhas folgas, vou querer estar com você também.

Aquele também tira todo o resto de esperança que eu ainda possa ter. Olho bem para o Rogério e estraçalho:

- Tá legal, a  gente combina o horário de visitas, pra eu fazer a minha mochila. O papai vai me levar pra assistir teatrinho na vesperal, ou a gente vai para o parque da Mônica em algum shopping? Com direito a sorvete, hein? Senão eu faço o maior berreiro.

Ele se levanta, meio sem graça:

- Você está muito magoada, por isso vamos dar tempo ao tempo, princesa. A gente continua se falando. Não se esqueça do que eu disse.

Ele sai do quarto e eu fico sem ação por alguns momentos. Sem chorar, sem gritar, sem fazer nada. Eu tenho apenas um escolha, ainda que pareça dolorosa demais: encarar a realidade!

Quando a Viviane volta do trabalho, conto da aparição do Rogério e do que ele falara sobre regulamentar as visitas, como se eu fosse uma criança...

Mas a Viviane parece farta daquele assunto:

- Que tal a gente sair e comer uma pizza naquela cantina que você gosta?

- Grande ideia, Viviane. Até que uma pizza vem a calhar, Danem-se as calorias. Meu corpo de munição.

Na cantina, trançamos a maior e mais suculenta pizza que pode existir na face da Terra. Mas o melhor foi que batemos altos papos regados a guaraná. 

A Viviane conta que a revista está indo muito bem: ela foi elogiada pelo seu trabalho e teve até o contrato renovado.

Fico contente com a notícia... Vem em boa hora, porque a Viviane, admita ou não, está de moral baixo. Quem não estaria, tendo sido trocada por uma mulher com quase a metade da sua idade?

Voltamos bem alegres do jantar, e ainda ficamos música até a hora de dormir. Com a correria do trabalho dela e dos meus estudos, faz tempo que a gente não sai assim em dupla, sem horário para voltar.

Vou dormir mais tranquila, tentando não pensar no meu pai. Até esqueço de fazer o feitiço habitual do Pedro; lá na casa da vó também não fiz. Quando lembro, já estou quase pegando no sono. Ainda penso: " Deixe pra lá, assim ele sente a minha falta".

No dia seguinte, logo cedo, dou de cara com o Pedro no corredor. Ele responde ao meu cumprimento e pergunta, como sempre, se está tudo bem, mas parece meio desligado.

De uma coisa eu tenho certeza: não vou dar moleza para homem nenhum, nem mesmo para o Pedro. Vai saber se ele não vai me botar pra escanteio, no futuro, como o Rogério fez com a Viviane?

Só espero que ela não marque bobeira e arrume também um garotão para desfilar por aí. Ia ser gozação demais para minha cabeça.

Acho que cresci de repente. Sofrer amadurece a gente na marra. 

Como é duro ser diferenteWhere stories live. Discover now