Dificil é Acordar

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Abro os olhos, espreguiço-me na cama - não tem jeito: é hora de encarar as feras! Antes que a Viviane bata na porta, ainda restam alguns minutos para calibrar as idéias. Isso se eu conseguir, claro! Acordo todo dia meio azeda, de mal com a vida, embora a minha querida mãe diga que eu reclamo de barriga cheia porque tenho tudo. No entender dela, lógico.

Minha maior bronca é me sentir "diferente" do resto da turma lá do colégio. Pior que bronca, é tragédia mesmo. Sou uma adolescente de dezesseis anos, e o maior sonho da minha vida é me tornar CNM, caber no meio, ser igual a todos os meus colegas, resumindo, fazer parte de uma tribo.

Mas, provavelmente, jamais serei igual aos meus colegas. Serei sempre a diferente - como o patinho feio do conto de fadas, que tenta ser igual e é olhado pelos outros com aquele desdém que parece dizer: "coitado!".

Afinal, o que me faz tão  diferente? Estou cansada de saber, mas vale a pena conferir.

Pulo da cama e enfrento o espelho do banheiro. O espanto começa por esse cabelo crespo, horrível; nem chapa de cabeleireiro consegue dar jeito. Já usei tudo que foi pasta alisante, até ferro de passar roupa - saiu tanta fumaça da minha cabeça que a minha empregada, assustada, quase pegou o extintor de incêndio. E o cabelo arrepiou todo, fiquei parecendo aquelas bruxas de desenho animado.

A coisa continua com os olhos, sem cor definida. Meu Deus, o que eu daria para ter olhos azuis ou verdes! Como a minha colega de classe, a Carol, que parece uma estrela de Hollywood, com aquele cabelão loiro, liso e olhos azuis que fazem o maior sucesso com os garotos.

Meus olhos são castanhos, desbotados e, ainda por cima, tenho miopia. Podia usar lente de contato, óbvio, eu até tentei. O problema é que não sou muito cuidadosa; fui passar um fim de semana na fazenda de uns parentes, esqueci de levar o xampu das lentes, tinha uma estrada de terra por lá - aí já viu, né? Peguei uma baita conjuntivite, além de levar um sermão do oftalmologista, que proibiu o uso das lentes até eu "adquirir maior responsabilidade".

Esqueci de falar do aparelho nos dentes: nasci meio dentuça, não sei a quem puxei, porque a Viviane, minha mãe, tem uma arcada dentária maravilhosa, perfeita - sabe aquela que já nasceu com tudo certinho? É magra, nunca fez regime, come o que quer, tem um cabelos lisos, ótima pele.

Meu pai, o Rogério, também é bonitão, ele é piloto de avião. Outro dia ele apareceu com o uniforme de comandante lá na escola para se despedir de mim, antes de viajar foi um auê entre as garotas:

- Nossa, Layla, seu pai é um gato, hein?

Brincadeira! Será que sou mesmo filha biológica dos meus pais?

E o corpo então? O meu corpo, claro! Eu não sou aquele tipo de garota que possa ser chamada de gostosa, mas também não sou nenhuma top model. Sou mais gordinha do que para magra, e de um jeito desengonçado: pouco peito e bumbum, mas muita barriga, além de perna e cintura grossas, quer dizer, um despautério - ouvi  essa palavra outro dia, não sei direito o quer dizer e nem me dei ao trabalho de olhar no dicionário, mas só pelo som, achei ótima: devo ser isso mesmo.

Para falar verdade, a única, mas a única coisa que eu acho bonito no meu corpo são os pés: tenho pés muito pequenos, de Cinderela. Acho que eu devia ter nascido uns dois séculos antes - daí iria ao baile no palácio, perderia um dos sapatos - de propósito, claro! - nas escadarias, e o príncipe, nos dias seguintes, mandaria virar  reino de cabeça pra baixo até encontrar a dona dos mais lindos pezinhos: eu! Mas quem liga para pés bonitos, neste terceiro milênio, século XXI, onde todo mundo anda de bota e de tênis.

Conclusão: nasci na família e no século errados. Acho que foi um ato falho da cegonha! Brincadeira... já sou meio grandinha pra acreditar em cegonha, né? Aliás, hoje em dia. ninguém acredita nisso.

Tenho uma bisavó que conta uma história muito engraçada: a mãe dela dizia que os bebês vinham dentro dos pés de repolho. Então, a bisa diz que nunca conseguiu comer repolho na vida, porque imaginava estar mastigando os próprios irmãozinhos - dá pra acreditar numa coisa dessas?

Mas voltando à cegonha, que é mais engraçadinha que pé de repolho, responsável por esta guria. ela provavelmente estava de ressaca, pegou a trouxa de bebês e foi jogando pelas chaminés. Quando chegou na chaminé da minha casa, teve assim uma crise de ausência, e, pluft, jogou o bebê errado; eu!

Foi assim que, na família maravilhosa da Viviane e do Rogério nasceu esta maravilha falante chamada... Layla! - que é o nome da avó do meu querido pai, a tal bisa contadora de histórias, que ele ama de paixão! Fui batizada com o nome dela, nome que, por sinal, eu de-tes-to! Só faltou então ele me colocar o nome daquela cachorrinha que foi para o espaço, anos atrás, a Laica.

Por enquanto a situação é a seguinte: já, já, a Viviane vai bater na porta, elegantérrima, perfumada, pronta para ir para a revista onde é editora de moda, e dizer naquela voz autoritária dela:

- Layla, hora de acordar!

 E eu vou responder, como sempre, na minha voz suave e educada, mas cerrando os dentes para não ser malcriada:

- Tô indo...

Mas eu não chamo a Viviane de mãe nem amarrada e sob tortura. O Rogério eu chamo de pai, de propósito, só para provocar, mas ela finge que nem escuta.

Eu também de-tes-to essa autoconfiança dela!


Significado de Despautério; é uma grande tolice. É sinônimo de despropósito, disparate.

 Laica - primeiro ser vivo a ser enviado ao espaço, em 3 de novembro de 1957, com o objetivo de testar o comportamento dos seres vivos no ambiente do espaço exterior. (N. da A.)



Como é duro ser diferenteOnde histórias criam vida. Descubra agora