Quando as aparências enganam

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Chego no colégio e encontro a maior bagunça; o clima é de paranóia geral. A Roseana corre para me encontrar:

- Já sabe o que aconteceu?

- Claro que não, acabei de chegar e dei de cara com essa confusão...

- Sequestraram a Jéssica bem na porta do colégio!

Quase caio dura.

- Você está brincando!

- Antes estivesse. A Jéssica estava chegando quando um carro parou do lado dela e, dentro dele, saíram dois caras que pegaram a garota e levaram embora... A dona Aparecida está se matando de chorar, coitada!

Eu e a Roseana fomos procurar a dona Aparecida. Ela estava numa sala, cercado de professores e alunos, tomando um copo d'água com açúcar, todos tentando acalmá-la. Mas que mãe vai ter calma numa hora dessas?

- Confundiram a minha filha com os alunos ricos aqui do colégio - ela fica repetindo, debulhada em lágrimas.

A dona Aparecida é funcionária antiga do colégio, por isso a Jéssica ganhou da diretoria uma bolsa de estudos e está com a gente desde a primeira série do ensino fundamental.

A Jéssica é superesforçada, faz de tudo para merecer essa bolsa. A família dela é humilde, a mãe trabalha na secretaria e o pai é frentista num posto de gasolina. Nunca que eles iam podem pagar a mensalidade de um colégio tão caro.

Há algum tempo, a diretoria decidiu que todo mundo é obrigado a andar de uniforme; foi por isso que os bandidos se confundiram e levaram a Jéssica pensando que ela também é de família abonada.

Ela mora longe, vem para o colégio de metrô, junto com a mãe que também entra cedo no trabalho. Justamente nesta manhã, a Jéssica chegou de carro importado, com motorista, por ter passado a noite na casa de uma colega, que está de cama e quem foi levar a matéria atrasada.

Os sequestradores deviam estar de tocaia e, quando viram a garota chegando, de uniforme, carro importado, com motorista, deduziram que era rica  e a levaram.

A Jéssica é admirada pelo esforço em batalhar pelo próprio futuro. Nunca falta às aulas e sempre tira boas notas. Ela quer cursar Direito para se tornar juíza. E o fato de frequentar um bom colégio aumenta a chance de ela entrar numa boa falcudade pública.

Mas o que não falta é gente preconceituosa e metida à besta. Às vezes, quando a Jéssica passa, cheia de cadernos e livros na mochila, ela tem que ouvir piadinhas do tipo:

- Conte aí, princesa, quando é que você vira a Gata Borralheira?

- Deve ser chato estudar num colégio cheio de riquinho e depois voltar pra sua casa na periferia, né, não?

Sorte que no colégio é obrigatório o uso do uniforme, senão a Jéssica sofreria ainda mais pela falta de roupas e tênis de grife. Ninguém a convida para nada, com a desculpa de que ela mora longe, não tem roupa pra vestir, esses argumentos bestas. Na realidade, é preconceito mesmo.

Com a Tatiana também existe preconceito, mas é diferente: a Tatiana é de família abonada, se veste muito bem, usa jóias bonitas. Se ainda fosse  pobre, além de negra, a barra ainda seria pior.

O dia passou no maior sufoco. O diretor do colégio mandou vir um médica para atender a dona Aparecida. Depois de medicada, ela foi aconselhada a ir para casa, pois não tinha condição emocional de permanecer no trabalho.

O diretor mandou que um dos motoristas do colégio a levasse. Durante toda a manhã, ele passou de classe em classe, acalmando os alunos, garantindo que tudo estava sob controle, e que, provavelmente, logo os sequestradores perceberiam o engano. Também não seria por esse triste acontecimento que a gente deixaria de usar uniforme - ele era importante para que a vigilância do colégio reconhecesse os alunos.

Claro que estávamos todos assustados, e foi um tal  de ligar do celular para casa sem tamanho. Alguns, pais, apavorados, vieram imediatamente buscar os filhos.

O diretor procurava acalmá-los, mas permaneceu a paranóia. Até a Viviane ligou da revista dizendo que viria me buscar na saída das aulas, que eu não me atrevesse a ir embora sozinha.

Confesso que estava com um pouco de medo. Só de pensar na pobre da Jéssica nas mãos dos bandidos, quem sabe jogada num porta-malas de carro, rodando por aí, até  chegar no cativeiro...

Será que iam deixá-la amarrada, será que iam dar comida para ela? Ainda bem que ela não tomava nenhum medicamento, era saudável. E quando falassem em dinheiro, acreditariam que ela era uma garota pobre, filha de funcionária de colégio e de um frentista de posto de gasolina? E se eles achassem que ela estava embromando e insistissem num baita resgate?

Quando vi a Viviane chegando, fiquei mais calma. Ela parecia mais assustada do que eu. Disse que estava torcendo para que jornal nenhum desse a notícia. já pensou se seu pai lesse, pela internet, que haviam sequestrado uma aluna do meu colégio? Ele ficaria desesperado!

Dias depois, a gente ficou sabendo que os sequestradores ligaram, pedindo um milhão de reais de resgate. Os pais da Jéssica tentaram argumentar com os bandidos: haviam levado a pessoa errada, eles eram pobres, não podiam pagar quantia alguma.

Os sequestradores insistiram: eles que não tentassem enganá-los; naquele colégio só estudava gente muito rica - se não pagassem o resgate, iam receber pedaços de Jéssica pelo correio.

A dona Aparecida apareceu desesperada no colégio, pedindo que o diretor tomasse providência, antes que os bandidos fizessem alguma maldade com a filha dela.

O diretor não teve outra alternativa: foi até um canal de televisão, onde tinha um amigo, e deu uma declaração. ao vivo, de que a garota era filha de uma funcionária do colégio. Só chegara de carro importado porque dormira na casa de uma colega. E que os pais eram pessoas humildes, sem condição de pagar resgate algum. Praticamente suplicou que os sequestradores  poupassem a Jéssica.

Felizmente para a garota, os sequestradores viram o programa e acreditaram que haviam cometido um engano. Soltaram a Jéssica certa manhã, num bairro distante, onde ela pediu ajuda num bar. Telefonou para casa e os pais foram buscá-la.

Uma semana depois, a Jéssica apareceu no colégio muito abatida. Contou que fora levada para uma casa, onde ficou sob a guarda de duas adolescentes, pouco mais velhas que ela.

Como achavam que ela fosse rica, eles até perguntavam o que ela queria comer. Mas ela dormir no chão, sobre um colchonete, num pequeno quarto sempre com a luz acesa, e ficou o tempo todo sem banho. Mal a deixavam ir ao banheiro, sempre acompanhada por uma das garotas.

As ameaças eram sempre dirigida aos pais dela, como ela ficou sabendo depois, para que eles ficassem aterrorizados e pagassem logo o resgate.

Mas, dessa vez os bandidos - que ainda não foram apanhados - saíram perdendo. Ainda bem que não aconteceu o pior e soltaram a Jéssica, sã e salva

Como é duro ser diferenteOnde histórias criam vida. Descubra agora