Areia no olho do outro é colírio

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Parece até que foi olho gordo, praga do tal Renato. Dias atrás, o Rogério voltou de viagem e achei que fosse paranóia minha, porque ele estava diferente. Fez um pouco de festa para mim, mas  logo chamou a Viviane e foram conversar, trancados no quarto.

Depois de quase uma hora eles apareceram com uma expressão esquisita no rosto. Disseram que queriam falar comigo um assunto muito importante.

Sentei  de frente para eles e fiquei esperando a bomba. Eles pareciam inquietos, sem graça. Foi o Rogério quem começou a falar, meio sem jeito:

- Olhe, Layla, a gente nunca teve segredos com você, sempre fomos uma família unida, por isso acho importante ter essa conversa...

- Puxa, Rogério, você está me deixando nervosa - interrompi. - Quem foi que morreu?

- Não se trata disso - ele respondeu, muito sério.

- Então fale de uma vez!

- Eu e sua mãe concordamos em nos separar - detonou ele numa frase só.

Fiquei em estado de choque. Ainda bem que estava sentada, senão tinha caído. O meu cérebro entendera perfeitamente bem o que o Rogério dissera, mas todo o meu ser se revoltou. Aquilo não podia esta acontecendo comigo, só acontecia com os outros. Eu era diferente, tinha pais que se amavam, viviam juntos há quase vinte  anos, decididamente isso era um pesadelo ruim, não podia ser verdade!

- Brincadeira tem hora, corte essa - retruquei, em posição de defesa.

- Você acha que a gente iria brincar com uma coisa tão séria? - O Rogério se levantou-se, veio até o sofá, sentou-se ao meu lado e pegou a minha mão. - Sei que deve ser um choque para você, mas isso acontece em muita famílias!

- Como, acontece? Acontece o que? - gritei, arrancando a minha mão dele. - Nunca vi vocês brigarem! Nunca! Não têm ciúmes, cada um respeita a vida profissional do outro... O que é que deu em vocês, me digam, ficaram loucos?

- Não, minha filha - O Rogério tentava me acalmar. - Sua mãe é uma mulher maravilhosa, quem pediu a separação fui eu. Por um único motivo: eu me apaixonei por outra mulher e, por respeito a vocês duas, não poderia levar uma vida dupla...

- Você... o que? - Olhei para o Rogério como se estivesse vendo um estranho na minha frente.

- É isso o que você escutou,  Layla, tente encarar a realidade para sofrer menos - interveio a Viviane, aparentemente impassível. Mas pelo tremor da sua voz, dava para imaginar o quanto ela lutava para se controlar. - Seu pai já tomou a decisão, não há nada que possamos fazer para que ele mude idéia.

Pulei do sofá como se tivesse tomado um choque:

- Como você pode, depois de vinte anos... Você não pensou na Viviana, pior que isso, você não pensou na sua própria filha... Como você pode me trair desse jeito?

Num ímpeto, corri soluçando para o meu quarto e tranquei a porta. O Rogério veio atrás, ficou batendo a porta, suplicando:

- Abra a porta, Layla, pelo amor de Deus, não quero ver você assim. Eu não vou deixar de ser seu pai pelo fato de me separar da sua mãe...

Mas eu já tinha me jogado na cama, chorava alto e repetia:

- Traidor, traidor!!!

Até que ele desistiu e parou de bater na porta. A Viviane nem apareceu. Acho que tentava reagir da forma dela, mais racional e, pelo menos, respeitou a minha privacidade.

Naquele dia não sai do quarto nem para comer. Aliás, se comesse, ia pôr tudo pra fora, de tão nervosa. Eu não queria acreditar que aquilo estivesse acontecendo comigo. A conversa com o Renato parecia agora uma premonição - como se alguma força cósmica estivesse me preparando para o pior.

A frase dele não saia do meu pensamento; "os meus irmãos dizem que não foi fácil para eles quando os pais se separaram. Hoje eles estão acostumados...". 

Acostumada? Nunca, jamais, em tempo algum! Aos poucos, eu ia vendo a situação se tornar real e sombria: se o Rogério e a Viviane iam se separar, ele naturalmente, sairia de casa, iria morar com a outra. Quando voltasse das viagens, ele se dirigia para a nova casa... Não haveria mais as chegadas festivas, com presentes para mim, talvez nem mesmo os e-mails e os cartões-postais que sempre chegavam depois dele.

A casa dele seria outro lugar, com a nova mulher, talvez até com os filhos que ela já tivesse de um relacionamento anterior, igualzinho como acontecera com o Renato. Só que, no caso dele, todos os irmãos viviam na mesma casa. Eu, embora não curtisse a Viviane, jamais iria morar com o Rogério e aquela mulher desconhecida... a ladra que roubou o meu pai!

Ainda que eu viva mil anos, acho que nunca terei um dia tão terrível na minha vida! O meu mundo desabou naquele instante, quando ouvi aquela palavra terrível: se-pa-ra-ção.

E pensar que toda essa infelicidade foi causada justamente pela pessoa que eu mais amava no mundo. Nem a minha paixão pelo Pedro comparava ao amor que eu sentia pelo Rogério! Isso porque eu confiava plenamente no meu pai, ele sempre me passou um sentimento de segurança profundo - o mundo podia acabar, mas eu continuaria feliz, porque ninguém tinha um pai igual ao meu.

"Eu não vou deixar de ser seu pai porque vou me separa da sua mãe" E quem estava preocupando com a Viviane? Ela era realizado profissionalmente, jovem, bonita, bem relacionada. Não seria difícil refazer a própria vida - quem sabe até tivesse algum pretedente que, ao vê-la descasada, se apresentaria como candidato a seu amor.

O meu caso era pior. Quem seria capaz de substituir o meu pai? algum colega da Viviane na revista? Um padrasto que se enfiaria na nossa casa, propondo que eu o chamasse de pai?

E por onde andaria o meu pai? Casado com outra, uma desconhecida, quem seria essa criatura? Ele vivia de lá pra cá, sempre viajando... Talvez fosse uma comissária ou outra funcionária da companhia de aviação. Quem sabe até uma passageira que se encantou com ele? Ou uma estrangeira que ele conhecera num país qualquer?

Na realidade, pouco me importava saber quem era essa mulher. Ela existia e conseguira destruir uma família, roubar uma marido e deixar uma filha órfã de pai vivo.

Um ódio brutal em relação a essa mulher tomou conta de mim. Contra a mulher desconhecida, contra o Rogério e até mesmo contra a Viviane, que não se revoltara com a notícia. Ela nunca foi dada de baixarias e naquele momento teve uma atitude digna: quer ir embora, a porta á a serventia da  casa... Será que foi isso?

Talvez a Viviane já tivesse notado alguma diferença nele. Ainda que o Rogério ficasse pouco tempo em casa, ela, inteligente como é, talvez tivesse percebido algum sinal. Mulher tira de letra essa coisa...

Uma pergunta insistente, quase infernal, começou a surgir no fundo da minha mente: se o Rogério ainda amasse a Viviane, ele teria sido seduzida por essa estranha? Alguém se separa se está realmente feliz?

Fosse como fosse, a atitude dele era imperdoável. Ele me traíra, deixara de ser meu pai, ele morrera para mim.

Como é duro ser diferenteWhere stories live. Discover now