Coração quebrado

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"As coisas que não posso dizer fluem
Sentimentos pendentes rastejam em meu rosto"
BTS - Outro: Tear

Eu mal conseguia encaixar a chave no buraco da fechadura da de tão trêmula que estava minha mão. Quem visse meu interior naquele momento poderia facilmente enxergar um caco de pessoa, com a maquiagem borrada e olhos inchados de tanto chorar, mas por dentro, o estado conseguia ser pior. Caótico, cheio de feridas causadas por dores constantes. Naquela noite a bola de neve da desgraça conseguiu me soterrar finalmente. Meu coração estava completamente quebrado, em um milhão de cacos irreparáveis. Um quebra cabeça com peças de bordas tão esmigalhadas que não poderiam mais ser unidas.

A terrível sensação que eu tinha, era que meus pés estavam de uma vez por todas atolados na lama do fracasso.

Eu, Hortênsia, não tinha emprego, meu namorado poucos minutos antes tinha terminado o namoro comigo e, quando abri a porta de casa, a primeira coisa que vi foi minha mãe encolhida sobre o sofá. Mais uma vez sua pele estava coberta de hematomas causados pelas mãos daquele homem que eu chamava de pai.

Engoli meu choro que eu represara até ali e abri espaço em meu peito já cheio a fim de acomodar mais aquela dor.

- Mãe... - Chamei com a voz baixa e embargada.

Minha mãe olhou para cima e pude ver que metade de seu rosto estava praticamente desfigurada de tão inchada.

- Onde ele está? - Sussurrei olhando para os cantos, meu coração acelerado de medo fazia cada parte do meu corpo vibrar. Se meu pai estivesse bêbado com certeza faria de mim outro alvo.

- Ele foi embora filha. - Minha mãe retorceu a boca na tentativa de um sorriso triste, o que me fez perder minha última gota de força para continuar viva. - Vamos nos separar.

- Mãe... - Eu não sabia o que dizer, apesar de meu instinto humano me mandar dizer algo.

Ao invés de falar, cerrei os dentes, pensando que todo santo dia eu rezava para uma entidade que eu nem sabia se realmente existia, na vã esperança de que ela me ajudasse a ter uma luz no meio de todo o tormento que vivia.

Minha mãe tinha medo de se divorciar do meu pai por dois motivos principais, o primeiro era ele ser agressivo, o segundo era que ele a tinha proibido de trabalhar fora de casa desde quando se casaram, ela tinha medo de que o mercado de trabalho não a aceitasse e juntas passássemos fome.

Eu não sei exatamente a dor da fome, entretanto, se me dessem escolha eu iria preferir ela. Fazia muito tempo que eu procurava por emprego, porém nenhum lugar queria me contratar. Sempre tinha as mesmas justificativas, ou seja, falta de formação, de experiência ou minha aparência não era apropriada segundo a ótica deles.

Se eu tivesse um emprego, talvez pudesse sustentar minha mãe e livrar ela daquele relacionamento.

- Dessa vez é verdade, Hortênsia. - Minha mãe afirmou com um fio de voz.

Eu podia ver nos olhos dela que quando ele voltasse - porque ele ia voltar - e a convencesse de que ela não podia viver sem ele, ela aceitaria isso como verdade. Ele sempre fazia isso, a convencer de que ela era uma esposa horrível e por isso ele era o sofredor daqui. Eram voltas e voltas até convencê-la de uma verdade que não existia. E ele conseguia. No fim minha mãe sempre carregava uma culpa que não tinha e é isso que chamam de gaslighting.

Sem ação, tranquei a porta atrás de mim, arranquei a chave e corri para o meu quarto. Senti que foi errado, que eu devia ter abraçado minha mãe e ter confortado ela. Sei que era minha obrigação como filha apoiá-la e dizer que tudo ficaria bem, mas tudo o que fiz foi correr.

Fugi para que ela não visse minha tristeza e as lágrimas que eu não conseguia mais segurar. Eu não queria que ela se sentisse culpada por duas pessoas, nem que compartilhasse da minha dor enquanto já tinha a dela que era tão ruim quanto. Era meu jeito de poupar minha mãe.

Tranquei a porta do meu quarto e comecei a chorar silenciosamente, sentindo as fartas lágrimas correndo pelo meu rosto, meu peito abafado ficou preenchido pela dor, assim como por uma profunda - e nada nova - vontade de desaparecer da existência.

Sentia-me como um peso na vida da minha mãe.

Meu celular começou a tocar. Olhei no visor e vi que era o número do meu ex. Por um instante tive esperanças de que ele se desculpasse comigo e voltasse a me namorar. No fundo eu sabia que não gostava dele e que era traída, mas muitas vezes ele era meu escape. Nosso relacionamento ruim era uma distração, uma anestesia para minha dor.

Atendi.

"Oi minha flor, eu pensei que apesar de tudo podíamos manter uma amizade colorida. Só sexo. Você é gostosinha e eu odiaria te perder." Ele disse e depois riu como se tivesse contado uma piada.

Desliguei sem falar nada. Minha vontade era de arremessar o celular contra a parede, só que uma pessoa pobre não tem esse luxo. Eu não sabia quando poderia comprar outro.

A raiva que me tomou de assalto logo foi varrida. Em seu lugar veio a vontade de desaparecer do mundo, de morrer.

Caí de joelhos no chão de cerâmica e depois deitei em posição fetal enquanto ainda chorava em silêncio. Meus olhos miravam a escuridão que havia debaixo da cama, tão inescrutável quanto minha alma.

Quando as lágrimas secaram finalmente, cerrei minhas pálpebras doloridas. Estiquei o braço e abri uma gaveta do guarda roupas onde havia um estilete afiado. Eu não pretendia cortar o pulso. Uma pessoa que quer desaparecer da vida tem métodos mais assertivos.

Abri o estilete e cerrei as pálpebras, mergulhando na escuridão.

Coração curado [Concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora